Posted by : Unknown junho 06, 2014

Capítulo 2


Harry desceu para o café na manhã seguinte e já encontrou os três Dursley sentados à mesa. Estavam assistindo a uma televisão novinha em folha, um presente de boas-vindas para as férias de verão em casa de Duda, que andara se queixando, em várias vozes, sobre a grande distância entre a geladeira e a televisão da sala. Duda passara a maior parte do verão na cozinha, seus miúdos olhinhos de porco fixos na telinha e sua papada em cinco camadas balançando enquanto ele comia sem parar.
Harry sentou-se entre Duda e tio Válter, um homem grande e socado, com pescoço de menos e bigodes de mais. Longe de desejarem a Harry um feliz aniversário, os Dursley não deram qualquer sinal de que tinham reparado em sua entrada na cozinha, mas o menino estava mais do que acostumado com isso para se importar. Serviu-se de uma fatia de torrada e em seguida olhou para o repórter na televisão, que já ia adiantado na transmissão de uma notícia sobre um fugitivo da prisão.
“Alertamos os nossos telespectadores de que Black está armado e é extremamente perigoso. Se alguém o avistar deverá ligar para o número do plantão de emergência imediatamente.”
— Nem precisa dizer quem ele é — riu-se tio Válter, espiando o prisioneiro por cima do jornal. — Olhem só o estado dele, a imundice do desleixado! Olhem o cabelo dele!
E lançou um olhar de esguelha, maldoso, para Harry, cujos cabelos despenteados sempre tinham sido uma fonte de grande aborrecimento para o tio. Comparado ao homem da televisão, porém, cujo rosto ossudo era emoldurado por um emaranhado que lhe chegava aos cotovelos, Harry se sentiu, na verdade, muito bem penteado.
O repórter reaparecera.
"O Ministério da Agricultura e da Pesca irá anunciar hoje...”
— Espere aí! — berrou tio Válter, olhando furioso para o repórter, — Você não disse de onde esse maníaco fugiu! De que adiantou o alerta? O louco pode estar passando na minha rua neste exato momento!
Tia Petúnia, que era ossuda e tinha cara de cavalo, virou-se depressa e espiou com atenção pela janela da cozinha. Harry sabia que a tia simplesmente adoraria poder ligar para o telefone do plantão de emergência. Era a mulher mais bisbilhoteira do mundo e passava a maior parte da vida espionando os vizinhos sem graça, que nunca faziam nada errado.
— Quando é que eles vão aprender — exclamou tio Válter, batendo na mesa com o punho grande e arroxeado — que a força é a única solução para gente assim?
— É verdade — concordou tia Petúnia, que ainda procurava ver alguma coisa por entre a trepadeira do vizinho.
Tio Válter terminou de beber a xícara de chá, deu uma olhada no relógio de pulso e acrescentou:
— É melhor eu ir andando, Petúnia. O trem de Guida chega às dez.
Harry, cujos pensamentos andavam no andar de cima com o Estojo para Manutenção de Vassouras, foi trazido de volta à terra com um tranco desagradável.
— Tia Guida? — o garoto deixou escapar. — É... Ela não está vindo para cá, está?
Tia Guida era irmã de tio Válter. Embora não fosse um parente consangüíneo de Harry (cuja mãe fora irmã de tia Petúnia), a vida inteira ele tinha sido obrigado a chamá-la de "tia". Tia Guida morava no campo, em uma casa com um grande jardim, onde ela criava buldogues. Raramente se hospedava na Rua dos Alfeneiros, porque não conseguia suportar a idéia de se separar dos seus preciosos cachorros, mas cada uma de suas visitas permanecia horrivelmente nítida na cabeça de Harry.
Na festa do quinto aniversário de Duda, tia Guida tinha dado umas bengaladas nas canelas de Harry para impedi-lo de vencer o primo em uma brincadeira. Alguns anos mais tarde, ela aparecera no Natal trazendo um robô computadorizado para Duda e uma caixa de biscoitos de cachorro para Harry. Na última visita, um ano antes do garoto entrar para Hogwarts, ele pisara sem querer o rabo do cachorro favorito da tia. Estripador perseguira Harry até o jardim e o acuara em cima de uma árvore, mas tia Guida se recusara a recolher o cachorro até depois da meia-noite. A lembrança desse incidente ainda produzia lágrimas de riso nos olhos de Duda.
— Guida vai passar uma semana aqui — rosnou tio Válter — e enquanto estamos nesse assunto — ele apontou um dedo gordo e ameaçador para Harry — precisamos acertar algumas coisas antes de eu sair para apanhá-la.
Duda fez ar de riso e desviou o olhar da televisão. Assistir a Harry ser maltratado pelo pai era sua diversão favorita.
— Em primeiro lugar — rosnou tio Válter —, você vai falar com bons modos quando se dirigir a Guida.
— Tudo bem — disse Harry com amargura —, se ela fizer o mesmo quando se dirigir a mim.
— Em segundo lugar — continuou o tio, fingindo não ter ouvido a resposta de Harry —, como Guida não sabe nada da sua anormalidade, não quero nenhuma... Nenhuma gracinha enquanto ela estiver aqui. Você vai se comportar, está me entendendo?
— Eu me comporto se ela se comportar — retrucou Harry entre dentes.
— E em terceiro lugar — disse tio Válter, seus olhinhos maldosos agora simples fendas na enorme cara púrpura — dissemos a Guida que você freqüenta o Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis.
— Quê?— berrou Harry.
— E você vai sustentar essa história, moleque, ou vai se dar mal — cuspiu tio Válter.
Harry ficou sentado ali, o rosto branco e furioso, encarando o tio Válter, sem conseguir acreditar no que ouvia. Tia Guida vinha fazer uma visita de uma semana — era o pior presente de aniversário que os Dursley já tinham lhe dado, incluindo nessa conta o par de meias velhas do tio.
— Bom, Petúnia — disse tio Válter, levantando-se com esforço —, vou indo para a estação, então. Quer me acompanhar para dar um passeio, Dudoca?
— Não — respondeu o menino, cuja atenção se voltara para a televisão agora que o pai acabara de ameaçar Harry.
— O Dudinha tem que ficar elegante para receber a titia — disse tia Petúnia, alisando os cabelos louros e espessos do filho. — Mamãe comprou para ele uma linda gravata-borboleta.
Tio Válter deu uma palmadinha no ombrão de porco de Duda.
— Vejo vocês daqui a pouco, então — disse ele, e saiu da cozinha.
Harry que estivera sentado numa espécie de transe de horror, teve uma idéia repentina. Abandonando a torrada, ele se levantou depressa e acompanhou o tio até a saída.
Tio Válter estava vestindo o paletó que usava no carro.
— Eu não vou levar você — rosnou ele ao se virar e ver Harry observando-o.
— Como se eu quisesse ir — disse Harry friamente. — Quero lhe perguntar uma coisa.
O tio mirou-o desconfiado.
— Os alunos do terceiro ano em Hog... Na minha escola às vezes têm permissão para visitar o povoado próximo — disse Harry.
— E daí? — retrucou o tio, tirando as chaves do carro de um gancho próximo à porta.
— Preciso que o senhor assine o formulário de autorização — disse Harry depressa.
— E por que eu iria fazer isso? — falou o tio com desdém.
— Bom — respondeu Harry, escolhendo cuidadosamente as palavras — vai ser duro fingir para tia Guida que eu freqüento o Saint não sei das quantas... — E Harry ficou satisfeito de ouvir uma inconfundível nota de pânico em sua voz.
— Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis! — berrou.
— Exatamente — disse Harry, encarando com toda a calma o rosto púrpura do tio. — É muita coisa para eu me lembrar. Tenho que parecer convincente, não é mesmo? E se eu, sem querer, deixar escapar alguma coisa?
— Vou fazer picadinho de você, não é mesmo? — rugiu o tio, avançando para o sobrinho com o punho levantado. Mas Harry agüentou firme.
— Fazer picadinho de mim não vai ajudar tia Guida a esquecer o que eu poderia contar a ela — disse em tom de ameaça.
Tio Válter parou, o punho ainda levantado, a cara de uma feia cor marrom-arroxeada.
— Mas se o senhor assinar o meu formulário de autorização — apressou- se Harry a acrescentar —, juro que vou me lembrar da escola que o senhor diz que freqüento, e vou me comportar como um trou... Como se fosse normal e todo o resto.
Harry percebeu que o tio estava considerando a proposta, mesmo que seus dentes estivessem arreganhados e uma veia latejasse em sua têmpora.
— Certo — disse por fim, bruscamente. — Vou vigiar o seu comportamento muito de perto durante a visita de Guida. Se, quando terminar, você tiver andado na linha e sustentado a história, eu assino a droga do formulário.
E, dando meia-volta, abriu a porta e bateu-a com tanta força que uma das vidraças no alto se soltou.
Harry não voltou à cozinha. Subiu as escadas e foi para o quarto.
Se ia se comportar como um trouxa de verdade, era melhor começar já.
Devagar e com tristeza, reuniu seus presentes e cartões de aniversário e escondeu-os debaixo da tábua solta do soalho com os deveres de casa. Depois, foi até a gaiola de Edwiges. Errol parecia ter-se recuperado; ele e Edwiges estavam dormindo, com a cabeça enfiada embaixo da asa. Harry suspirou e cutucou as corujas; para acordá-las.
— Edwiges — disse deprimido —, você vai ter que dar o fora por uma semana. Vá com Errol. Rony cuidará de você. Vou escrever um bilhete para ele explicando.
— E não me olhe assim — os grandes olhos âmbar de Edwiges se encheram de censura —, não é minha culpa. É o único jeito que tenho de conseguir uma autorização para visitar Hogsmeade com Rony e Hermione.
Dez minutos depois, Errol e Edwiges (que levava um bilhete para Rony amarrado na perna) saíram voando pela janela e desapareceram de vista. Harry, agora se sentindo completamente infeliz, guardou a gaiola vazia dentro do armário.
Mas não teve muito tempo para se entristecer. Não demorou quase nada e tia Petúnia já estava gritando lá embaixo para Harry descer e se preparar para dar as boas-vindas à hóspede.
— Faça alguma coisa com o seu cabelo! — disse tia Petúnia bruscamente quando o sobrinho chegou embaixo.
Harry não via sentido em tentar fazer seu cabelo ficar penteado.
Tia Guida adorava criticá-lo, por isso, quanto mais desarrumado, mais satisfeita ela iria ficar.
Demasiado cedo, ouviu-se um ruído de pneu triturando areia quando o carro de tio Válter entrou de marcha a ré pelo caminho da garagem, depois, batidas de portas e passos no jardim.
— Atenda a porta! — sibilou tia Petúnia para Harry.
Com uma sensação de grande tristeza e depressão na boca do estômago, Harry abriu a porta.
Na soleira encontrava-se tia Guida. Era muito parecida com o tio Válter; corpulenta, alta, socada, a cara púrpura, tinha até bigode, embora não tão peludo quanto o do irmão. Em uma das mãos ela trazia uma enorme mala, e, aninhado sob a outra, um buldogue velho e mal-humorado.
— Onde está o meu Dudoca? — bradou tia Guida. — Onde está o meu sobrinho fofo?
Duda veio gingando em direção ao hall, os cabelos louros emplastrados na cabeça gorda, uma gravata-borboleta quase invisível sob a papada quíntupla. Tia Guida largou a mala na barriga de Harry, deixando-o sem ar, agarrou Duda num abraço apertado com o braço livre e plantou-lhe uma beijoca na bochecha.
Harry sabia perfeitamente bem que Duda só agüentava os abraços da tia porque era bem pago para isso, e não deu outra, quando os dois se separaram, Duda levava uma nota novinha de vinte libras apertada na mão gorda.
— Petúnia! — exclamou tia Guida, passando por Harry como se ele fosse um cabide de chapéus. As duas se beijaram, ou melhor, tia Guida deu uma queixada na bochecha ossuda de tia Petúnia.
Tio Válter entrou nesse momento, sorrindo jovialmente e fechou a porta.
— Chá, Guida? — ofereceu. — E o que é que o Estripador vai tomar?
— Estripador pode beber um pouco de chá no meu pires — respondeu tia Guida enquanto seguiam todos para a cozinha, deixando Harry sozinho no hall com a mala.
Mas o menino não ia se queixar; qualquer desculpa para ficar longe da tia era bem-vinda, por isso começou a carregar a pesada mala para o quarto de hóspedes, demorando o máximo que pôde.
No momento em que voltou à cozinha, tia Guida já fora servida de chá e bolo de frutas e Estripador lambia alguma coisa, fazendo muito barulho, a um canto.
Harry viu tia Petúnia fazer uma ligeira careta ao ver gotas de chá e baba pontilharem o seu chão limpo. Ela detestava animais.
— Quem ficou cuidando dos outros cachorros, Guida? — perguntou tio Válter.
— Ah, deixei o coronel Fubster tratando deles — ribombou em resposta Guida. — Ele entrou para a reforma agora e é bom ter alguma coisa para fazer. Mas não pude deixar o coitado do Estripador, tão velho. Ele fica doente de tristeza quando viajo.
Estripador recomeçou a rosnar quando Harry se sentou. Isto atraiu a atenção de tia Guida para Harry, pela primeira vez.
— Então! — vociferou ela. — Ainda está por aqui?
— Estou — respondeu o menino.
— Não diga "estou" nesse tom ingrato — rosnou tia Guida. — É uma grande bondade Válter e Petúnia acolherem você. Eu não teria feito o mesmo. Eu o teria mandado direto para um orfanato se alguém largasse você na minha porta.
Harry estava doido para responder que preferia viver em um orfanato do que com os Dursley, mas a lembrança do formulário de Hogsmeade fez com que se calasse.
Ele se esforçou para dar um sorriso constrangido.
— Não me venha com sorrisinhos! — trovejou tia Guida. — Estou vendo que não melhorou nada desde a última vez que o vi. Tive esperanças que a escola lhe desse educação à força, se fosse preciso. — Ela tomou um grande gole de chá, limpou o bigode e continuou:
— Aonde mesmo que você o está mandando Válter?
— St. Brutus — respondeu o tio prontamente. — É uma instituição de primeira classe para casos irrecuperáveis.
— Entendo. Eles usam a vara em St. Brutus? — vociferou ela do lado oposto da mesa.
Tio Válter fez um breve aceno de cabeça por trás de tia Guida.
— Usam — respondeu Harry. Depois, sentindo que devia fazer a coisa bem-feita, acrescentou: — o tempo todo.
— Ótimo — aprovou tia Guida. — Eu não aceito essa conversa fiada de não bater em gente que merece. Uma boa surra de vara resolve noventa e nove casos em cem. Você já apanhou muitas vezes?
— Ah, já — respondeu Harry —, um monte de vezes.
Tia Guida apertou os olhos.
— Não gosto do seu tom, moleque. Se você consegue falar das surras que leva com esse tom displicente, obviamente não estão lhe batendo com a força que deviam. Petúnia, se eu fosse você escreveria à escola. Deixaria claro que os tios aprovavam o uso de força extrema no caso desse moleque.
Talvez tio Válter estivesse preocupado que Harry pudesse esquecer o acordo que tinham feito; o caso é que ele mudou o assunto bruscamente.
— Ouviu o noticiário hoje de manhã, Guida? E aquele prisioneiro que fugiu, hein?
Enquanto tia Guida começava a se fazer em casa, Harry se surpreendeu pensando quase com saudade na vida na Rua dos Alfeneiros, nº. 4 sem ela.
Tio Válter e tia Petúnia em geral encorajavam Harry a ficar fora do caminho deles, o que o menino fazia com a maior satisfação. Tia Guida, por outro lado, queria Harry debaixo dos seus olhos o tempo todo, para poder fazer, com aquele vozeirão, sugestões para melhorá-lo. Adorava comparar Harry a Duda, e tinha o maior prazer de comprar presentes caros para Duda enquanto olhava feio para Harry, como se o desafiasse a perguntar por que não recebera um presente também. Além disso, ela não parava de soltar piadas de mau gosto sobre as razões de Harry ser uma pessoa tão deficiente.
— Você não deve se culpar pelo que os meninos são hoje, Válter — comentou ela durante o almoço do terceiro dia. — Se existe alguma coisa podre por dentro, não há nada que ninguém possa fazer.
Harry tentou se concentrar na comida, mas suas mãos tremiam e seu rosto começou a arder de raiva. Lembre-se do formulário, disse a si mesmo. “Pense em Hogsmeade. Não diga nada. Não se levante...”
Tia Guida esticou a mão para a taça de vinho.
— Isso é uma das regras básicas da criação, disse ela. — A gente vê isso o tempo todo com os cachorros. Se tem alguma coisa errada com uma cadela, vai ter alguma coisa errada com o filhote...
Naquele momento, a taça de vinho que tia Guida segurava explodiu em sua mão. Cacos de vidro voaram para todo lado e ela gaguejou e piscou, a caraça vermelha pingando.
— Guida! — guinchou tia Petúnia. — Guida, você está bem?
— Não se preocupe — resmungou tia Guida, enxugando o rosto com o guardanapo. — Devo ter segurado a taça com muita força. Fiz a mesma coisa na casa do coronel Fubster no outro dia. Não precisa se preocupar, Petúnia, tenho a mão pesada...
Mas tia Petúnia e tio Válter olharam desconfiados para Harry. Por isso o menino resolveu que era melhor não comer a sobremesa e se retirar da mesa o mais depressa que pudesse.
No corredor, apoiou-sena parede e respirou profundamente. Fazia muito tempo desde a última vez que se descontrolara e fizera uma coisa explodir. Não podia deixar que isso acontecesse de novo, O formulário de Hogsmeade não era a única coisa em jogo — se ele continuasse a agir assim, ia se encrencar com o Ministério da Magia.
Harry ainda era um bruxo menor de idade, portanto, pela lei dos bruxos, ele era proibido de fazer mágica fora da escola. A ficha dele não era muito limpa. Ainda no verão anterior recebera uma carta oficial em que o avisavam muito claramente que se o Ministério tomasse conhecimento de qualquer magia ocorrida na Rua dos Alfeneiros, ele seria expulso de Hogwarts.
Harry ouviu os Dursley se levantarem da mesa e correu escada acima para sair do caminho.
Harry conseguiu sobreviver os três dias seguintes forçando-se a pensar no manual de Faça a Manutenção da sua Vassoura sempre que tia Guida implicava com ele. A coisa funcionou muito bem, embora seu olhar parecesse vidrado, porque tia Guida começou a ventilar a opinião de que ele era mentalmente deficiente.
Finalmente, um finalmente muito demorado, chegou a última noite da estada de tia Guida. Tia Petúnia preparou um jantar caprichado e tio Válter abriu várias garrafas de vinho. Eles conseguiram terminar a sopa e o salmão sem mencionar nem uma vez os defeitos de Harry; quando comiam a torta merengue de limão, tio Válter deu um cansaço em todo mundo com uma longa conversa sobre Grunnings, sua empresa de brocas; depois tia Petúnia preparou o café e o marido apanhou uma garrafa de conhaque.
— Posso lhe oferecer essa tentação, Guida?
Tia Guida já bebera muito vinho. Sua cara enorme estava muito vermelha.
— Só um pouquinho, então — disse ela rindo. — Um pouquinho mais... Mais... Aí, perfeito.
Duda estava comendo o quarto pedaço de torta. Tia Petúnia bebericava café com o dedo mindinho esticado. Harry realmente queria desaparecer e ir para o quarto, mas deparou com os olhinhos zangados do tio Válter e viu que teria de agüentar até o fim.
— Aah — exclamou tia Guida, estalando os lábios e pousando o cálice de conhaque. — Um senhor jantar, Petúnia. Normalmente só como uma coisinha rápida à noite, com uma dúzia de cachorros para cuidar... — Ela soltou um gostoso arroto e deu umas palmadinhas na grande barriga coberta de tweed. — Me desculpem. Mas gosto de ver um menino de tamanho saudável — continuou ela, dando uma piscadela para Duda. — Você vai ter tamanho de homem, Dudoca, como seu pai. Sim, senhor, acho que vou querer mais um pouquinho de conhaque, Válter... Agora esse outro ai...
Ela virou a cabeça para indicar Harry que sentiu um aperto no estômago. O manual, pensou depressa.
— Esse aí tem um jeito ruim e mirrado. A gente vê isso nos cachorros. Pedi ao coronel Fubster para afogar um no ano passado. Era um ratinho. Fraco. Subnutrido.
Harry tentou se lembrar da página doze do seu livro Feitiço para Reverter Feitiços Persistentes.
— A coisa toda está ligada ao sangue, como eu ia dizendo ainda outro dia. O sangue ruim acaba aflorando. Mas, não estou dizendo nada contra a sua família, Petúnia — ela deu umas pancadinhas na mão ossuda da cunhada com sua mão que mais parecia uma pá —, mas sua irmã não era flor que se cheirasse. Isso acontece nas melhores famílias. Depois, fugiu com aquele imprestável e aí está o resultado bem diante dos olhos da gente.
Harry olhava fixamente para o próprio prato, sentindo uma zoeira engraçada nos ouvidos. “Segure sua vassoura pela cauda com firmeza”, pensou. Mas não conseguiu se lembrar do que vinha depois. A voz de tia Guida parecia perfurá-lo como se fosse uma das brocas do tio Válter.
— Esse Potter — continuou tia Guida bem alto, agarrando a garrafa e derramando mais conhaque no copo e na toalha da mesa —, você nunca me contou o que ele fazia.
Tio Válter e tia Petúnia tinham uma expressão extremamente tensa. Duda chegara a levantar os olhos da torta para olhar os pais, boquiaberto.
— Ele... Não trabalhava — disse tio Válter, sem chegar a olhar de todo para Harry. — Desempregado.
— Era o que eu esperava — disse tia Guida, bebendo um enorme gole de conhaque e limpando o queixo na manga. — Um parasita preguiçoso, imprestável, sem eira nem beira que...
— Não era não — exclamou Harry inesperadamente. Todos à mesa ficaram muito quietos. Harry tremia da cabeça aos pés.
Nunca sentira tanta raiva na vida.
— MAIS CONHAQUE! — bradou tio Válter, que empalidecera sensivelmente. Ele esvaziou a garrafa no cálice de tia Guida. — Você, moleque — rosnou para Harry. — Vá se deitar, ande...
— Não, Válter — soluçou tia Guida, erguendo a mão, os olhinhos injetados e fixos em Harry. — Continue, moleque, continue. Tem orgulho dos seus pais, é? Eles saem por aí e se matam num acidente de carro (imagino que bêbados)...
— Eles não morreram num acidente de carro! — protestou Harry, que percebeu que se levantara.
— Morreram num acidente de carro, sim, seu mentiroso infeliz, e jogaram você nos ombros de parentes decentes e trabalhadores! — gritou tia Guida, inchando de fúria. — Você é um ingrato, insolente e...
Mas repentinamente ela se calou. Por um instante pareceu que tinham-lhe faltado palavras. Parecia estar inchando, engasgada de tanta raiva... Mas não parou de inchar. Sua cara enorme e vermelha começou a crescer, os olhos miúdos saltaram das órbitas, e a boca se esticou tanto que a impedia de falar — no segundo seguinte vários botões simplesmente saltaram do seu paletó de tweed e ricochetearam nas paredes —, ela inflou como um balão monstruoso, a barriga transbordou o cós da saia, os dedos engrossaram como salames...
— GUIDA! — berraram tio Válter e tia Petúnia juntos quando o corpo dela começou a se erguer da cadeira em direção ao teto. Estava completamente redonda agora, como uma enorme bóia com olhinhos porcinos, e as mãos e os pés se projetaram estranhamente do corpo que flutuava no ar, dando estalinhos apopléticos. Estripador entrou derrapando na sala, latindo enlouquecido.
— NÃÃÃÃÃÃÃO!
Tio Válter agarrou Guida por um pé e tentou puxá-la para baixo, mas quase foi erguido do chão também. Um segundo depois, Estripador avançou, e de um salto abocanhou a perna do tio Válter.
Harry se precipitou, para fora da sala de jantar antes que alguém pudesse impedi-lo, e correu para o armário sob a escada. A porta do armário se abriu magicamente quando ele se aproximou. Em segundos, o garoto tinha arrastado o seu malão para a porta da rua. Subiu aos saltos a escada e se atirou embaixo da cama, levantando a tábua solta do soalho, agarrou a fronha cheia de livros e presentes de aniversário. Arrastou-se para fora, passou a mão na gaiola vazia de Edwiges, correu de volta ao lugar em que deixara o malão, na hora em que tio Válter irrompia da sala de jantar, com a perna da calça em tiras ensangüentadas.
— VOLTE AQUI! — urrou. — VOLTE AQUI E FAÇA-A VOLTAR AO NORMAL!
Mas uma raiva que não media conseqüências se apoderara de Harry. Ele deu um chute no malão para abri-lo, puxou a varinha e apontou-a para o tio Válter.
— Ela mereceu — disse ofegante. — Ela mereceu o que aconteceu. E o senhor fique longe de mim.
Depois, tateou as costas à procura do trinco da porta.
— Vou-me embora. Para mim já chega.
E no momento seguinte Harry estava na rua escura e silenciosa, puxando o malão pesado, a gaiola de Edwiges debaixo do braço.

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