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Unknown
junho 04, 2014
Capítulo 13
— Ah, e naturalmente Malfoy sabe — disse Harry a Rony e Hermione, que continuaram sua nova política de fingir surdez sempre que o amigo mencionava a sua teoria de que Malfoy era um Comensal da Morte.
Harry se perguntava se Dumbledore voltaria, de onde quer que estivesse, em tempo para a aula de segunda-feira à noite, mas, não tendo recebido notícia em contrário, apresentou-se à porta do escritório às oito horas, bateu e Dumbledore mandou-o entrar. Ali estava o diretor com um ar anormalmente cansado; sua mão estava mais escura e queimada que nunca, mas ele sorriu quando convidou Harry a sentar. A Penseira encontrava-se, mais uma vez, em cima da mesa, projetando reflexos prateados no teto.
— Você andou muito ocupado enquanto estive fora — disse Dumbledore. — Creio que presenciou o acidente com a Katie.
— Presenciei, senhor. Como vai ela?
— Ainda bem mal, embora tenha tido sorte. Parece que roçou no colar apenas uma parte ínfima da pele: havia um buraco em sua luva. Se tivesse usado ou se tivesse segurado o colar com a mão desprotegida, teria morrido, talvez instantaneamente. Por sorte, o professor Snape pôde tomar providências para impedir que o feitiço se espalhasse...
— Por que ele? — perguntou Harry imediatamente. — Por que não Madame Pomfrey?
— Impertinente — disse uma voz branda que vinha de um dos retratos na parede; Fineus Nigellus Black, bisavô de Sirius, ergueu a cabeça dos braços onde parecia estar dormindo. — No meu tempo, eu não teria permitido a um aluno questionar o funcionamento de Hogwarts.
— Muito obrigado, Fineus — replicou Dumbledore acalmando-o. — O professor Snape conhece muito mais sobre as Artes das Trevas do que Madame Pomfrey, Harry. Em todo caso, a equipe do hospital St. Mungus está me enviando um boletim de hora em hora, e tenho esperança de que, com o tempo, Katie irá se recuperar plenamente.
— Onde é que o senhor esteve esse fim de semana, senhor? — perguntou Harry, desprezando uma forte sensação de que estava abusando e que, pelo visto, era partilhada por Fineus Nigellus, que assobiou baixinho.
— Eu preferia não revelar neste momento — respondeu Dumbledore. — Mas lhe contarei no devido tempo.
— Contará? — admirou-se Harry.
— Espero que sim — disse o diretor, tirando de dentro das vestes um novo frasco de lembranças prateadas e desarrolhando-o com um toque de varinha.
— Senhor — começou Harry hesitante —, encontrei Mundungo em Hogsmeade.
— Ah, sim, já estou ciente de que Mundungo andou tratando sua herança com dedos leves e pouco respeito — disse Dumbledore enrugando ligeiramente a testa. — Ele se escondeu depois que você o abordou à porta do Três Vassouras; creio que está com medo de me enfrentar. Mas fique tranqüilo que ele não vai mais tirar o que pertenceu a Sirius.
— Aquele mestiço velho e sarnento anda roubando objetos da família Black? — perguntou Fineus indignado; e saiu silenciosamente da moldura, sem dúvida para visitar o seu quadro no número doze do largo Grimmauld.
— Professor — recomeçou Harry depois de uma breve pausa —, a professora McGonagall lhe contou o que falei depois que a Katie foi enfeitiçada? Sobre Draco Malfoy?
— Ela me contou suas suspeitas.
— E o senhor...
— Tomarei as medidas adequadas para investigar qualquer um que possa ter participado do acidente com Katie. Mas o que me interessa agora, Harry, é a nossa aula.
Harry não gostou muito da resposta: se as aulas eram tão importantes, então por que tinha havido um intervalo tão grande entre a primeira e a segunda? Contudo, não falou mais em Draco Malfoy, e ficou observando Dumbledore despejar lembranças frescas na Penseira e começar a girar a bacia de pedra nas mãos longas.
— Você certamente se lembra de que deixamos a história dos primeiros tempos de Lord Voldemort no ponto em que o trouxa bonitão, Tom Riddle, abandonou a esposa bruxa, Mérope, e retornou à casa da família em Little Hangleton. Mérope foi abandonada sozinha em Londres, esperando o filho que um dia se tornaria Lord Voldemort.
— Como sabe que ela estava em Londres, senhor?
— Pelo testemunho de um tal Carataco Burke que, por uma estranha coincidência, ajudou a fundar a mesmíssima loja de onde veio o colar de que acabamos de falar.
Dumbledore girou o conteúdo da Penseira como Harry já o vira fazer antes, como um garimpeiro peneirando à procura de ouro. Do redemoinho prateado, emergiu um velhinho que girou lentamente na Penseira, prateado como um fantasma, porém muito mais sólido, com uma cabeleira que encobria totalmente os seus olhos.
— Sim, adquirimos o medalhão em circunstâncias curiosas. Foi trazido por uma jovem bruxa pouco antes do Natal, ah, há muitos anos. Ela disse que precisava urgentemente de ouro, o que era visível. Bonita e coberta de trapos, em adiantado... estado de gravidez, entende. Disse ainda que o medalhão tinha pertencido à família Slytherin. Bem, sempre ouvimos este tipo de história. “Ah, isto pertenceu a Merlim, era o seu bule de chá favorito”, e quando eu ia examinar, tinha realmente o sinete dele, mas alguns feitiços simples bastavam para me revelar a verdade. É claro que aquela circunstância tornava o medalhão quase inestimável. A moça não parecia ter idéia do seu valor. Ficou feliz em receber dez galeões pelo objeto. A melhor pechincha que já fizemos!
Dumbledore deu à Penseira uma sacudida mais vigorosa e Carataco Burke foi reabsorvido pela massa espiralante de memórias de onde saíra.
— Ele deu à bruxa apenas dez galeões? — comentou Harry indignado.
— Carataco Burke não ficou famoso por sua generosidade. Sabemos, então, que, próximo ao fim da gravidez, Mérope estava sozinha em Londres precisando desesperadamente de ouro, desesperada o bastante para vender seu único bem com valor, o medalhão que era uma preciosa herança da família.
— Mas ela podia usar a magia! — exclamou Harry impaciente. — Podia arranjar comida e tudo de que precisasse usando a magia, não podia?
— Ah, talvez pudesse. Mas acredito, e novamente estou imaginando, embora seja quase uma certeza, que, quando foi abandonada pelo marido, Mérope parou de recorrer à magia. Acho que não quis mais ser bruxa. Claro que também é possível que o seu amor não correspondido e o conseqüente desespero tenham minado seus poderes, isto pode acontecer. De qualquer modo, e você está prestes a ver, Mérope se recusou a empunhar a varinha até mesmo para salvar a própria vida.
— Não quis viver nem para o filho? — Dumbledore ergueu as sobrancelhas.
— Será possível que você esteja sentindo pena de Lord Voldemort?
— Não — apressou-se Harry a negar —, mas ela teve escolha, não é, não foi como a minha mãe...
— Sua mãe também teve escolha — disse Dumbledore, gentilmente. — Mérope Riddle preferiu morrer apesar do filho que precisava dela, mas não a julgue com tanta severidade, Harry. Ela estava enfraquecida pelo longo sofrimento e nunca teve a coragem de sua mãe. E, agora, se você ficar de pé...
— Aonde vamos? — perguntou Harry, quando Dumbledore se juntou a ele à frente da escrivaninha.
— Desta vez, vamos entrar na minha memória. Penso que lhe parecerá ao mesmo tempo rica em detalhes e satisfatoriamente exata. Primeiro você...
Harry se inclinou para a Penseira; seu rosto cortou a fresca superfície das lembranças e ele se viu mais uma vez caindo pela escuridão... segundos depois, seus pés bateram no chão firme, ele abriu os olhos e viu que estavam parados em uma antiga e movimentada rua de Londres.
— Aquele sou eu — disse Dumbledore, animado, apontando para um vulto que atravessava a rua à frente de uma carroça de leite puxada por um cavalo.
A barba e os cabelos longos do jovem Alvo Dumbledore eram acaju. Ao chegar do lado oposto da rua, seguiu pela calçada, atraindo muitos olhares curiosos por causa do vistoso terno de veludo cor de ameixa que estava usando.
— Belo terno, senhor — comentou Harry sem conseguir se conter, mas Dumbledore simplesmente riu e os dois foram acompanhando o seu eu mais jovem, a curta distância, até um pátio vazio defronte a um prédio quadrado e sinistro cercado por altas grades. Ele subiu uma pequena escada que levava à porta de entrada e bateu uma vez. Passado um momento, a porta foi aberta por uma moça desleixada, de avental.
— Boa-tarde. Tenho hora marcada com uma Sra. Cole, que acredito ser a governanta daqui.
— Ah — exclamou a moça de ar espantado, registrando a excêntrica aparência de Dumbledore. — Hum... um momentinho... SRA. COLE! — berrou por cima do ombro.
Harry ouviu uma voz distante gritando alguma coisa em resposta. A moça tornou a falar com Dumbledore.
— Entre, ela está vindo.
Dumbledore entrou por um corredor azulejado de preto e branco; o lugar era pobre, mas imaculadamente limpo. Harry e o velho Dumbledore o seguiram. Antes que a porta se fechasse, às suas costas, uma mulher muito magra e aflita veio caminhando depressa em sua direção. Tinha um rosto bem delineado, que parecia mais ansioso do que mau, e, enquanto ia ao encontro de Dumbledore, falava por cima do ombro com outra ajudante de avental.
— ...e leve o iodo para Marta lá em cima, Carlinhos Stubbs andou descascando as perebas outra vez e Erico Whalley está se esvaindo nos lençóis, e ainda por cima com catapora — comentou, sem se dirigir a ninguém em particular, e então o seu olhar recaiu em Dumbledore e ela parou instantaneamente, admirada, como se uma girafa tivesse acabado de cruzar a entrada da casa.
— Boa-tarde — disse Dumbledore, estendendo a mão. A Sra. Cole simplesmente boquiabriu-se.
— Meu nome é Alvo Dumbledore. Enviei uma carta pedindo para marcar uma hora, e a senhora gentilmente me convidou para vir aqui hoje.
A senhora piscou os olhos. Com jeito de quem procurava decidir se Dumbledore não seria uma alucinação, ela disse com voz fraquinha:
— Ah, sim. Bem... bem, então, é melhor vir à minha sala. É.
Ela conduziu Dumbledore a uma salinha que aparentemente se dividia em sala e escritório. Era tão pobre quanto o hall, e a mobília era velha e desparelhada. A senhora convidou, então, Dumbledore a sentar em uma cadeira bamba e se acomodou à escrivaninha atravancada, observando-o nervosamente.
— Estou aqui, conforme disse em minha carta, para discutir sobre o menino Tom Riddle e as providências para o seu futuro — começou Dumbledore.
— O senhor é da família? — perguntou a Sra. Cole.
— Não, sou professor. Vim oferecer a Tom uma vaga em minha escola.
— E que escola é essa?
— Chama-se Hogwarts.
— E por que se interessou por Tom?
— Acreditamos que tenha qualidades que procuramos.
— O senhor quer dizer que ele ganhou uma bolsa? Como pode ter ganhado? Nunca pedimos uma bolsa para ele.
— Bem, o nome dele está inscrito em nossa escola desde que nasceu.
— Quem o inscreveu? Os pais?
Não havia dúvidas de que a Sra. Cole era uma mulher inconvenientemente astuta. E, pelo visto, Dumbledore teve a mesma opinião, porque Harry o viu tirar discretamente a varinha do bolso do terno de veludo, ao mesmo tempo que apanhava uma folha de papel em branco da escrivaninha da Sra. Cole.
— Veja — disse Dumbledore fazendo um aceno com a varinha e passando o papel à senhora. — Acho que isto esclarecerá tudo.
Os olhos da Sra. Cole saíram de foco e tornaram a entrar enquanto examinava, atenta, a folha de papel por um momento.
— Parece perfeitamente em ordem — disse calma, devolvendo o papel. Então seu olhar recaiu sobre uma garrafa de gim e dois copos, que com certeza não estavam ali alguns segundos antes.
— Ah... o senhor aceita um cálice de gim? — perguntou a mulher em tom elegante.
— Muito obrigado — aceitou Dumbledore sorridente.
Logo se tornou claro que a Sra. Cole não era nenhuma principiante quando se tratava de beber gim. Servindo para ambos uma generosa dose, ela bebeu o seu cálice de um gole. Estalando os lábios sem constrangimento, sorriu para Dumbledore pela primeira vez, e ele não hesitou em aproveitar a vantagem.
— Eu estava imaginando se a senhora não poderia me contar alguma coisa da história de Tom Riddle? Creio que ele nasceu aqui no orfanato, não?
— Certo — confirmou a Sra. Cole, servindo-se de mais gim. — Lembro muito claramente, porque estava começando a trabalhar aqui. Era véspera de Ano-Novo, fazia muito frio, nevava, sabe. Uma noite tempestuosa. E essa moça, que não era muito mais velha do que eu, chegou com dificuldade à nossa porta. Bem, ela não foi a primeira. Nós a acolhemos e ela teve o bebê em menos de uma hora. E na hora seguinte morreu.
A Sra. Cole acenou a cabeça solenemente e tomou mais um gole de gim.
— Ela disse alguma coisa antes de morrer? — perguntou Dumbledore. — Alguma coisa sobre o pai do garoto, por exemplo?
— Por acaso, disse — confirmou a Sra. Cole, que parecia estar se divertindo, com o gim na mão e uma platéia ansiosa para ouvir sua história.
“Lembro que ela me disse: ‘Espero que ele pareça com o pai’, e não vou mentir, a moça tinha razão em desejar isso, porque ela não era nenhuma beleza... e então me falou que o bebê deveria receber o nome de Tom em homenagem ao pai e Servolo em homenagem ao pai dela... é, eu sei, é um nome engraçado, não é? Ficamos imaginando que tivesse vindo de um circo... e ela disse que o sobrenome do garoto era Riddle. E sem dizer mais nada, morreu pouco depois.
“Bem, demos ao bebê o nome que a mãe tinha pedido, parecia tão importante para a coitada, mas nunca nenhum Tom nem Servolo nem Riddle veio procurar a criança, nem família nenhuma apareceu, então ele ficou no orfanato e está aqui desde aquela época.”
A Sra. Cole serviu-se, quase sem se dar conta, de mais uma saudável dose de gim. Duas manchas rosadas apareceram nas maçãs do seu rosto. E então ela continuou:
— É um garoto engraçado.
— Sei — disse Dumbledore. — Achei que fosse.
— Foi um bebê engraçado também. Quase nunca chorava, sabe. Depois, quando foi crescendo ficou... esquisito.
— Esquisito, como? — perguntou Dumbledore gentilmente.
— Bem, ele...
Mas a Sra. Cole se calou, e não havia nada confuso ou vago no olhar inquisitivo que lançou a Dumbledore por cima do cálice de gim.
— O senhor diz que ele tem vaga garantida em sua escola?
— Certamente.
— E nada que eu disser pode mudar isso?
— Nada.
— O senhor o levará seja qual for a informação que lhe dê?
— Seja qual for a informação — respondeu Dumbledore solenemente.
A mulher encarou-o apertando os olhos como se decidisse se podia ou não confiar nele. Aparentemente, achou que podia, porque disse apressada:
— Ele mete medo às outras crianças.
— A senhora quer dizer que ele as intimida?
— Acho que deve intimidar — respondeu a Sra. Cole, franzindo ligeiramente a testa —, mas é muito difícil pegá-lo em flagrante. Tem havido incidentes... bem desagradáveis...
Dumbledore não a pressionou, embora Harry percebesse que estava interessado. A mulher tomou mais um gole de gim e suas bochechas rosadas ficaram ainda mais rosadas.
— O coelho de Carlinhos Stubbs... bem, Tom disse que não fez nada e não vejo como poderia ter feito, mas o bicho não se enforcou nas traves do teto sozinho, não é?
— Eu diria que não — concordou Dumbledore em voz baixa.
— Mas o diabo é saber como foi que ele subiu lá no alto para fazer isso. O que sei é que Tom e Carlinhos tinham discutido no dia anterior. — E então, a Sra. Cole tomou mais um gole, que desta vez escorreu um pouco pelo seu queixo. — No passeio do verão... saímos com eles, sabe, uma vez por ano, vamos ao campo ou à praia... bem, Amada Benson e Dênis Bishop nunca tiveram muita certeza, e só o que conseguimos extrair deles foi que tinham ido a uma caverna com Tom Riddle. Ele jurou que só foram explorar o lugar, mas alguma coisa aconteceu lá dentro, tenho certeza. E, bem, têm acontecido muitas coisas, coisas engraçadas...
Ela tornou a encarar Dumbledore, e, embora seu rosto estivesse corado, o olhar era firme.
— Acho que muito pouca gente vai lamentar ver este garoto pelas costas.
— Estou certo de que a senhora compreende que não vamos mantê-lo na escola o ano inteiro, não? — lembrou Dumbledore. — Ele terá de voltar para aqui, no mínimo, a cada verão.
— Ah, bem, isso é menos ruim do que levar uma pancada no nariz com um ferro enferrujado — respondeu a mulher com um leve soluço. Ela se levantou e Harry ficou impressionado de ver que estava bem firme, embora dois terços do gim tivessem desaparecido. — Presumo que o senhor gostaria de ver o garoto, não?
— Muito — disse Dumbledore se erguendo.
A Sra. Cole saiu com o diretor da sala, subiu uma escada de pedra, dando ordens e chamando a atenção dos seus auxiliares e das crianças que passavam. Todos os órfãos, Harry notou, usavam o mesmo tipo de bata acinzentada. Pareciam razoavelmente bem cuidados, mas não havia como negar que era um lugar sinistro para educar uma criança.
— É aqui — anunciou a Sra. Cole, ao virarem no segundo patamar e pararem à primeira porta de um comprido corredor. Ela bateu duas vezes e entrou. — Tom? Tem uma visita para você. Este é o Sr. Dumberton... desculpe, Dunderbore. Ele veio lhe dizer... bem, vou deixar que ele mesmo diga.
Harry e os dois Dumbledore entraram no quarto, e a Sra. Cole fechou a porta. Era um pequeno cômodo vazio exceto por um guarda-roupa velho e uma cama de ferro. Um garoto estava sentado em cima dos cobertores cinzentos, as pernas esticadas à frente, segurando um livro.
Não havia traços dos Gaunt no rosto de Tom Riddle. Mérope realizara o seu último desejo: ele era uma miniatura do pai bonitão, alto para os seus onze anos, pálido e de cabelos escuros. Seus olhos se estreitaram ligeiramente ao registrar a excêntrica aparência de Dumbledore. Houve um momento de silêncio.
— Como vai, Tom? — perguntou Dumbledore adiantando-se e estendendo a mão.
O garoto hesitou, aceitou a mão e se cumprimentaram. Dumbledore puxou uma cadeira de madeira para junto de Riddle, fazendo-os parecer um paciente e a sua visita em um hospital.
— Sou o professor Dumbledore.
— Professor? — repetiu Riddle. Mostrou-se preocupado. — E como um “doutor”? Por que está aqui? Ela trouxe o senhor para me examinar?
O garoto apontava para a porta pela qual a Sra. Cole acabara de sair.
— Não, não — respondeu Dumbledore sorrindo.
— Não acredito no senhor. Ela quer que me examine, não é? Fale a verdade!
O garoto disse as três últimas palavras com uma força tão altissonante que era quase assustadora. Era uma ordem, e, pelo jeito, ele já a dera muitas vezes antes. Seus olhos tinham se esbugalhado e fixavam, sérios, Dumbledore, cuja única reação foi continuar sorrindo agradavelmente. Decorridos alguns segundos, Riddle parou de encarar o professor, embora parecesse ainda mais desconfiado.
— Quem é o senhor?
— Eu já lhe disse. Meu nome é Dumbledore, e trabalho em uma escola chamada Hogwarts. Vim lhe oferecer uma vaga em minha escola, sua nova escola, se quiser ir.
A reação de Riddle ao ouvir isso foi surpreendente. Ele pulou da cama e se afastou de Dumbledore, furioso.
— O senhor não me engana! O hospício, é de lá que o senhor é, não é? “Professor”, claro, pois eu não vou, entende? Aquela gata velha é que deveria estar no hospício. Nunca fiz nada a Amadinha nem ao Dênis Bishop, e o senhor pode perguntar, eles dirão ao senhor!
— Eu não sou do hospício — replicou Dumbledore pacientemente. — Sou professor e, se você sentar e se acalmar, posso lhe falar sobre Hogwarts. É claro que se você preferir não ir, ninguém irá forçá-lo...
— Gostaria de ver alguém tentar — desdenhou Riddle.
— Hogwarts — continuou Dumbledore, como se não tivesse ouvido as últimas palavras do garoto — é uma escola para pessoas com talentos especiais...
— Eu não sou louco!
— Sei que não é. Hogwarts não é uma escola para loucos. E uma escola de magia.
Fez-se silêncio. Riddle congelara, seu rosto vazio de expressão, mas o olhar correndo de um olho de Dumbledore para o outro, como se tentasse apanhar um deles mentindo.
— Magia? — repetiu num sussurro.
— Exato.
— É... é magia, o que eu sei fazer?
— Que é que você sabe fazer?
— Muita coisa — sussurrou. Um rubor de excitação subiu do seu pescoço para as faces encovadas; parecia febril. — Sei fazer as coisas se mexerem sem tocar nelas. Sei fazer os bichos me obedecerem sem treinamento. Sei fazer coisas ruins acontecerem a quem me aborrece. Sei fazer as pessoas sentirem dor, se quiser.
Suas pernas tremiam. Ele se adiantou cambaleando e tornou a se sentar na cama, olhando para as mãos, a cabeça baixa como se rezasse.
— Eu sabia que era diferente — murmurou para os seus dedos trêmulos. — Sabia que era especial. Sempre soube que havia alguma coisa.
— Bem, você estava certo — disse Dumbledore, que já não sorria, mas observava Riddle com atenção. — Você é um bruxo.
Riddle ergueu a cabeça. Seu rosto se transfigurou: havia nele uma felicidade irreprimível, mas por alguma razão isso não o tornava mais bonito; pelo contrário, suas feições finas pareciam mais brutas, sua expressão quase bestial.
— O senhor também é bruxo?
— Sou.
— Prove — replicou Riddle imediatamente, no mesmo tom de comando que usara quando dissera “fale a verdade”.
Dumbledore ergueu as sobrancelhas.
— Se, como imagino, você estiver aceitando a vaga em Hogwarts...
— Claro que estou!
— Então, vai se dirigir a mim, chamando-me de “professor” ou de “senhor”.
As feições de Riddle endureceram por um instante fugaz antes que ele respondesse, em um tom irreconhecivelmente educado:
— Desculpe, senhor. Eu quis dizer: por favor, professor, pode me mostrar...?
Harry estava certo de que Dumbledore ia recusar, que ia responder a Riddle que haveria muito tempo para demonstrações práticas em Hogwarts, que naquele momento estavam em um prédio cheio de trouxas e, portanto, precisavam tomar cuidado. Para sua grande surpresa, porém, Dumbledore tirou a varinha do bolso interno do paletó, apontou-a para o guarda-roupa velho a um canto e fez um aceno displicente.
O guarda-roupa pegou fogo.
O garoto pulou da cama. Harry não podia censurá-lo por urrar de choque e fúria; todos os seus bens deviam estar ali dentro; mas, quando Riddle avançou para Dumbledore, as chamas desapareceram, deixando o guarda-roupa intacto.
Riddle olhou do móvel para Dumbledore, então, com uma expressão cobiçosa, apontou para a varinha.
— Onde posso arranjar uma dessas?
— Tudo a seu tempo — respondeu Dumbledore. — Acho que tem alguma coisa querendo sair do seu guarda-roupa.
De fato, ouvia-se alguma coisa chocalhando baixinho. Pela primeira vez, Riddle pareceu amedrontado.
— Abra a porta — ordenou Dumbledore.
Riddle hesitou, mas atravessou o quarto e escancarou a porta do armário. Na prateleira mais alta, acima de um trilho com umas poucas roupas, uma caixinha sacudia e chocalhava como se contivesse ratinhos frenéticos.
— Tire-a daí — disse Dumbledore.
Riddle apanhou a caixa trepidante. Pareceu nervoso.
— Tem alguma coisa nessa caixa que você não deveria ter? — perguntou Dumbledore. Riddle lançou a Dumbledore um olhar demorado, penetrante e astuto.
— Suponho que sim, senhor — disse finalmente com uma voz inexpressiva.
— Abra-a.
Riddle tirou a tampa e virou o conteúdo em cima da cama, sem olhar. Harry, que esperara alguma coisa mais excitante, viu uma confusão de pequenos objetos comuns: um ioiô, um dedal de prata e uma gaita-de-boca oxidada. Uma vez fora da caixa, eles pararam de tremer e mexer sobre os cobertores finos.
— Você os devolverá aos donos com suas desculpas — disse Dumbledore calmamente, tornando a guardar a varinha no paletó. — Saberei se fez isso. — E alertou: — Em Hogwarts, não toleramos roubos.
Riddle não pareceu sequer remotamente envergonhado; continuou a encarar Dumbledore com um olhar frio e avaliador. Por fim, disse com uma voz monótona:
— Sim, senhor.
— Em Hogwarts — continuou Dumbledore —, ensinamos não apenas a usar a magia, mas a controlá-la. Você tem usado os seus poderes, decerto sem saber, de um modo que não é ensinado nem tolerado em nossa escola. Você não é o primeiro nem será o último a deixar que a sua magia fuja ao seu controle. Mas é preciso que saiba que Hogwarts pode expulsar alunos e o Ministério da Magia, porque existe um Ministério, castiga os que desrespeitam as leis, ainda mais severamente. Todos os novos bruxos têm de aceitar que, ao entrar em nosso mundo, se submetem às nossas leis.
— Sim, senhor — repetiu o garoto.
Era impossível saber o que ele estava pensando; manteve o rosto impassível ao tornar a guardar os objetos roubados na caixa de papelão. Quando terminou, virou-se para Dumbledore e disse com atrevimento:
— Não tenho dinheiro.
— Isto é facilmente remediável — disse Dumbledore, tirando uma bolsa de couro do bolso. — Há um fundo em Hogwarts para os que precisam de ajuda para comprar livros e vestes. Você talvez tenha de comprar alguns livros de feitiços e outras coisas de segunda mão, mas...
— Onde se compram livros de feitiços? — interrompeu-o Riddle, que tinha apanhado a pesada bolsa de dinheiro sem agradecer, e agora examinava um maciço galeão de ouro.
— No Beco Diagonal. Trouxe a sua lista de livros e materiais escolares. Posso ajudá-lo a encontrar tudo...
— O senhor vai me acompanhar? — perguntou Riddle erguendo a cabeça.
— Certamente, se você...
— Não preciso do senhor — retrucou Riddle. — Estou acostumado a fazer tudo sozinho. Ando por toda a Londres desacompanhado. Como se chega a esse Beco Diagonal... senhor? — acrescentou ele, ao surpreender o olhar de Dumbledore.
Harry achou que Dumbledore fosse insistir em acompanhar Riddle, mas surpreendeu-se outra vez. Dumbledore lhe entregou o envelope contendo a lista de materiais e, depois de orientar o garoto exatamente como ir do orfanato ao Caldeirão Furado, acrescentou:
— Você o verá, embora à sua volta os trouxas, as pessoas que não são bruxas, não o vejam. Pergunte por Tom, o dono do bar, é fácil lembrar, porque tem o mesmo nome que você...
Riddle fez um movimento de irritação, como se tentasse espantar uma mosca insistente.
— Você não gosta do nome “Tom” ?
— Tem muita gente com esse nome — murmurou. Então, como se não conseguisse se conter, como se a pergunta escapasse de sua boca involuntariamente: — Meu pai era bruxo? Ele também se chamava Tom Riddle, me disseram.
— Receio não saber dizer — respondeu Dumbledore em tom gentil.
— Minha mãe não deve ter sido bruxa ou não teria morrido — disse o garoto mais para si mesmo do que para Dumbledore. — Deve ter sido ele. Muito bem, depois de comprar o que preciso, quando vou para essa tal Hogwarts?
— Todos os detalhes estão na segunda folha de pergaminho no seu envelope — informou Dumbledore. — Você embarcará na estação de King’s Cross no primeiro dia de setembro. Há também um bilhete de trem aí dentro.
Riddle assentiu. Dumbledore se levantou e estendeu mais uma vez a mão. Segurando-a, Riddle disse:
— Posso falar com as cobras. Descobri isso quando fui ao campo, nos passeios, elas me acham, sussurram para mim. Isto é normal nos bruxos?
Harry entendeu que ele evitara mencionar o mais estranho dos seus poderes até aquele momento, com a intenção de impressionar.
— Não é normal — respondeu Dumbledore, após breve hesitação —, mas há ocorrências.
Seu tom era displicente, mas os olhos estudaram curiosos o rosto de Riddle. Homem e garoto se encararam por um momento. Então, o aperto de mão se desfez. Dumbledore estava à porta.
— Até mais, Tom. Verei você em Hogwarts.
— Acho que já basta — anunciou o Dumbledore de cabelos brancos ao lado de Harry e, segundos depois, estavam voando mais uma vez, imponderáveis, pela escuridão, antes de aterrissarem com firmeza no escritório atual,
— Sente-se — disse Dumbledore, descendo ao lado de Harry.
O garoto obedeceu, sua mente ainda ocupada com o que acabara de presenciar.
— Ele acreditou muito mais depressa que eu, quero dizer, quando o senhor o informou de que era um bruxo — disse Harry. — Não acreditei em Hagrid, a princípio, quando ele me contou.
— É, Riddle estava absolutamente pronto para acreditar que era, para usar as palavras dele, “especial”.
— O senhor sabia... na época? — perguntou Harry.
— Se eu sabia que acabara de conhecer o bruxo das Trevas mais perigoso de todos os tempos? Não, eu não fazia idéia de que ele iria crescer e se tornar o que é. Mas fiquei certamente intrigado com ele. Voltei a Hogwarts com a intenção de vigiá-lo, coisa que, de qualquer modo, era minha obrigação, uma vez que ele não tinha família nem amigos, mas que, já então, eu sentia que devia fazer não somente por ele, mas pelos outros.
“Seus poderes, como você mesmo ouviu, eram surpreendentemente bem desenvolvidos para um bruxo tão jovem e, o que é mais curioso e ameaçador, ele já havia descoberto que conseguia controlá-los até certo ponto, e começou a usá-los de forma consciente. E como você viu, não eram as experiências aleatórias típicas de um bruxo jovem. Ele já estava usando a magia contra outras pessoas, para amedrontar, castigar e dominar. Os episódios do coelho enforcado e do garoto e da garota atraídos para uma caverna foram muito sugestivos... Sei fazer as pessoas sentirem dor, se quiser...”
— E ele era ofidioglota — interpôs Harry.
— É verdade, um talento raro e supostamente ligado às Artes das Trevas, embora, como já sabemos, também haja ofidioglotas entre os bruxos grandes e bons. De fato, sua capacidade para falar com as cobras me deixou tão preocupado quanto os seus instintos óbvios para a crueldade, o sigilo e a dominação.
“O tempo está nos enganando outra vez — comentou Dumbledore, indicando o céu escuro fora das janelas. — Mas, antes de nos despedirmos, quero chamar sua atenção para certos detalhes da cena que acabamos de presenciar, porque têm muita pertinência para os assuntos que iremos discutir nas próximas reuniões.
“Primeiro, espero que tenha reparado na reação de Riddle quando mencionei que outra pessoa tinha o mesmo nome que ele, ‘Tom’.”
Harry confirmou.
— Ali ele mostrou seu desprezo por qualquer coisa que o ligasse a outra pessoa, qualquer coisa que o tornasse comum. Já então ele queria ser diferente, isolado, famoso. Ele abandonou o nome próprio, conforme você sabe, poucos anos depois daquela conversa, e criou a máscara de “Lord Voldemort” por trás da qual se esconde há tanto tempo.
“Confio que você também tenha notado que Tom Riddle já era muito auto-suficiente, cheio de segredos e aparentemente sem amigos. Não quis ajuda nem companhia para ir ao Beco Diagonal. Preferiu agir sozinho. O Voldemort adulto é igual. Você ouvirá muitos Comensais da Morte dizerem que gozam de sua confiança, que somente eles são íntimos e até que o compreendem. Estão iludidos. Lord Voldemort nunca teve amigos e creio que jamais quis ter um.
“E, por último, e espero que não esteja sonolento demais para prestar atenção ao que vou dizer, Harry: o jovem Tom Riddle gostava de colecionar troféus. Você viu a caixa de objetos roubados que tinha escondido no quarto. Foram tirados das vítimas de sua intimidação, suvenires de momentos de magia particularmente desagradáveis. Não se esqueça dessa mania de apropriação, porque, mais tarde, ela será particularmente importante.
“E, agora, está realmente na hora de ir dormir.”
Harry se levantou. Ao atravessar o aposento, o seu olhar recaiu sobre a mesinha sobre a qual estivera o anel de Servolo Gaunt na aula anterior, mas o anel não estava mais ali.
— Sim, Harry? — indagou Dumbledore, ao ver Harry parar de repente.
— O anel desapareceu — disse ele olhando à sua volta. — Mas achei que talvez tivesse a gaita-de-boca ou outro objeto.
Dumbledore abriu um largo sorriso para ele, mirando-o por cima dos oclinhos de meia-lua.
— Muito sagaz, Harry, mas a gaita-de-boca era apenas uma gaita-de-boca.
E, com essa nota enigmática, ele acenou para Harry, que entendeu que o diretor o dispensara.