Posted by : Unknown junho 05, 2014

Capítulo 1


Os habitantes de Little Hangleton continuavam a chamá-la de "Casa dos Riddle", ainda que já fizesse muitos anos desde que a família Riddle morara ali. A casa ficava em um morro com vista para o povoado, algumas janelas pregadas, telhas faltando e a hera se espalhando livremente pela fachada.
Outrora uma bela casa senhorial, e, sem favor algum, a construção maior e mais imponente de toda a redondeza, a Casa dos Riddle agora estava úmida, em ruínas, e desocupada.
As pessoas do local concordavam que a velha casa dava arrepios. Meio século antes uma coisa estranha e terrível acontecera ali, uma coisa que os antigos habitantes do povoado ainda gostavam de discutir quando faltava assunto para fofocas. A história fora requentada tantas vezes e enfeitada em tantos pontos, que ninguém mais sabia onde estava a verdade. Todas as versões, porém, começavam no mesmo ponto: cinqüenta anos antes, ao amanhecer de uma bela manhã de verão, quando a casa dos Riddle ainda era bem cuidada e imponente, uma empregada entrou na sala de estar e encontrou os três Riddle mortos.
A empregada saiu correndo morro abaixo, aos berros, até o povoado, e acordou o maior numero possível de pessoas.
— Caídos na sala com os olhos abertos! Gelados! Ainda com a roupa do jantar!
A polícia foi chamada e Little Hangleton inteiro fervilhou de espanto, curiosidade e mal disfarçada excitação. Ninguém gastou fôlego em fingir tristeza com o que acontecera aos Riddle, porque eles eram muito impopulares. Os velhos Sr. e Sra. Riddle tinham sido ricos, esnobes e grosseiros, e seu filho adulto, Tom, era tudo isso em grau maior. A preocupação de todos que moravam em Little Hangleton era a identidade do assassino — pois não havia dúvida de que três pessoas aparentemente saudáveis não poderiam ter morrido, na mesma noite, de causas naturais.
O Enforcado, o bar local, faturou sem parar aquela noite; os habitantes do povoado apareceram em peso para discutir a matança. Foram recompensados por terem deixado o conforto de sua lareira, quando a cozinheira dos Riddle apareceu teatralmente e anunciou para o bar, repentinamente silencioso, que um homem chamado Franco Bryce acabara de ser preso.
— Franco! — exclamaram várias pessoas. — Nunca!
Franco Bryce era o jardineiro dos Riddle. Morava sozinho em uma casa malcuidada na propriedade dos patrões. Voltara da guerra com uma perna dura e uma intensa aversão por ajuntamentos e barulhos, e, desde então, trabalhava para os Riddle.
Houve um corre-corre geral para pagar bebidas para a cozinheira e ouvir maiores detalhes.
— Sempre achei que ele era esquisito — disse a mulher aos ouvintes ansiosos, depois do quarto xerez. — Assim, antipático. Tenho certeza de que não ofereci a ele só uma xícara de chá, ofereci bem umas cem. Nunca quis se misturar, nunca mesmo.
— Ah — disse uma mulher sentada ao balcão —, mas ele passou muito sofrimento na guerra, e gosta de uma vida tranqüila. Isso não é razão...
— Quem mais tinha a chave da porta dos fundos, então? — vociferou a cozinheira. — Desde que me entendo por gente, sempre teve uma chave de reserva pendurada na casa do jardineiro! Ninguém forçou a porta ontem à noite! Não tem janelas quebradas! Franco só precisou entrar escondido na casa grande enquanto a gente dormia...
As pessoas trocaram olhares tenebrosos.
— Eu sempre achei que ele tinha um jeito ruim, e não me enganei — resmungou um homem junto ao balcão.
— Foi a guerra que deixou ele esquisito, se querem saber a minha opinião — disse o dono do bar.
— Eu disse que não queria desagradar a Franco, não disse, Dot? — falou uma mulher agitada a um canto.
— Gênio terrível — concordou Dot acenando a cabeça com vigor. — Me lembro quando ele era criança...
Na manhã seguinte, quase ninguém em Little Hangleton duvidava que Franco Bryce tivesse matado os Riddle.
Mas na cidadezinha vizinha de Great Hangleton, na delegacia de polícia escura e feia, Franco teimava em repetir sem parar que era inocente e que a única pessoa que ele vira perto da casa, no dia da morte dos Riddle, fora um adolescente estranho, de cabelos negros e rosto pálido. Ninguém mais no povoado vira o tal garoto e a polícia não teve dúvidas de que Franco o inventara.
Então, quando as coisas estavam ficando muito feias para Franco, chegou o laudo sobre os cadáveres dos Riddle e tudo mudou.
A polícia nunca vira um laudo mais esquisito. Uma equipe de legistas examinara os corpos e concluíra que nenhum dos Riddle fora baleado, envenenado, esfaqueado, estrangulado, sufocado ou, pelo que sabiam, sofrera qualquer violência. Com efeito, continuava o laudo, em tom de inconfundível perplexidade, os Riddle, tirando o fato de que estavam mortos, pareciam gozar de perfeita saúde. Os legistas observaram (como se estivessem decididos a encontrar alguma coisa errada nos cadáveres) que cada membro da família tinha uma expressão de terror no rosto — mas, segundo afirmava a frustrada polícia, quem já ouvira falar de alguém morrer de pavor e como não havia a menor prova de que os Riddle tivessem sido assassinados, a polícia foi obrigada a soltar Franco. Os mortos foram enterrados no cemitério da igreja de Little Hangleton e, por algum tempo, suas sepulturas se tornaram alvo da curiosidade geral. Para surpresa de todos, e acompanhado por uma nuvem de desconfiança, Franco Bryce voltou para sua casinha na propriedade dos Riddle.
— Para mim, foi ele quem matou a família e não me interessa o que a polícia disse — comentou Dot no Enforcado. — E se ele tivesse um pingo de decência, iria embora daqui, sabendo que a gente sabe que foi ele.
Mas Franco não foi embora. Ficou para cuidar do jardim para a família que veio morar logo depois na Casa dos Riddle, e para a próxima — porque nenhuma das duas se demorou muito. Em parte, talvez tenha sido por causa de Franco que cada proprietário dizia que o lugar dava uma sensação desagradável e, por falta de moradores, acabou se desmantelando.
O ricaço que era o atual dono da Casa dos Riddle nem morava lá nem dava um destino a casa, diziam no povoado que ele a mantinha por "causa dos impostos", embora ninguém entendesse muito bem o que significava isso. E o ricaço continuou a pagar a Franco para cuidar da jardinagem. Ele agora se aproximava do seu septuagésimo sétimo aniversário, muito surdo, a perna mais dura que nunca, mas era visto trabalhando pelos jardins quando fazia bom tempo, embora o mato já começasse a levar a melhor.
O mato não era, no entanto, o único problema que Franco precisava enfrentar. Os garotos do povoado tinham criado o hábito de atirar pedras nas janelas da Casa dos Riddle. Passavam de bicicleta por cima da grama que Franco se empenhava tanto para manter aveludada. Umas duas vezes eles haviam arrombado a velha casa para ganhar apostas. Sabiam que o velho Franco era dedicado à propriedade e achavam graça vê-lo mancando pelo jardim, brandindo a bengala e ralhando, a voz roufenha, com os invasores. Franco, por sua vez, acreditava que os garotos o atormentavam porque, tal qual seus pais e avós, achavam que ele era um assassino. Por isso, quando acordou certa noite de agosto e viu uma coisa muito estranha na casa, ele simplesmente supôs que os garotos estivessem indo um pouco mais longe em suas tentativas de castigá-lo.
Foi a perna dura que o acordou; doía mais do que nunca agora na velhice.
Franco se levantou e desceu as escadas até a cozinha pensando em tornar a encher a bolsa de água quente para aliviar a rigidez do joelho. Parado a pia, enchendo a chaleira, ele olhou para a Casa dos Riddle e viu uma luz brilhando nas janelas do primeiro andar. Franco percebeu na mesma hora o que estava acontecendo. Os garotos tinham invadido novamente a casa e, a julgar pelo bruxuleio da luz, haviam acendido a lareira.
Franco não possuía telefone e, de qualquer modo, desconfiava demais da polícia, desde que esta o levara para interrogatório depois das mortes dos Riddle.
Na mesma hora, ele pousou a chaleira, correu para cima o mais rápido que a perna dura lhe permitiu, e logo voltou à cozinha, completamente vestido, e apanhou uma velha chave enferrujada no gancho junto à porta. Depois, pegou a bengala, que deixara apoiada na parede, e saiu pela noite.
A porta de entrada da Casa dos Riddle não tinha sinais de arrombamento, e o mesmo acontecia com as janelas. Andando com dificuldade, Franco contornou a casa em direção aos fundos até chegar a uma porta semi-escondida pela hera, apanhou a velha chave, enfiou-a na porta e abriu -a silenciosamente.
Entrou em uma cozinha cavernosa. Havia muitos anos não entrava ali; ainda assim, mesmo no escuro, ele se lembrou de onde era a porta para o corredor e tateou até encontrá-la, as narinas invadidas pelo cheiro de podridão, os ouvidos atentos a qualquer som de passos ou vozes no primeiro andar.
Chegou ao corredor, que estava um pouquinho mais claro, graças às grandes janelas de caixilhos que havia de cada lado da porta de entrada, e começou a subir as escadas, abençoando a poeira grossa que cobria a pedra, porque abafava o som dos seus passos e de sua bengala.
No patamar, Franco virou à direita e viu imediatamente onde se encontravam os intrusos: no finzinho do corredor havia uma porta entreaberta de onde saía uma luz vacilante, que projetava uma longa nesga dourada no chão escuro. Franco foi se aproximando mais, segurando a bengala com firmeza. A alguns passos da entrada, conseguiu entrever uma faixa estreita do quarto adiante.
O fogo estava aceso na lareira. Isto o espantou. Parou e escutou com atenção, porque uma voz masculina falava dentro do quarto; parecia tímida e temerosa.
— Sobrou um pouco na garrafa, milorde, se ainda tiver fome.
— Mais tarde — respondeu uma segunda voz. Esta também pertencia a um homem, mas era estranhamente aguda e fria como uma rajada repentina de vento gélido. Alguma coisa naquela voz fez os poucos cabelos na nuca de Franco ficarem em pé. — Me leve mais para perto do fogo, Rabicho.
Franco virou a orelha direita para a porta, para ouvir melhor. Ouviu o tinido de uma garrafa que alguém pousava sobre uma superfície dura, depois o ruído prolongado e seco de uma cadeira pesada arrastando pelo chão. O jardineiro viu de relance um homenzinho, de costas para a porta, empurrando a cadeira conforme lhe pediram. Usava uma longa capa preta, e tinha uma grande pelada na parte de trás da cabeça.
Depois, ele desapareceu de vista.
— Aonde foi Nagini? — perguntou a voz fria.
— N... Não sei, milorde — disse a primeira voz, nervosamente. — Saiu para explorar a casa, acho...
— Você vai ordenhá-la antes de nos recolhermos, Rabicho — disse a segunda voz. — Vou precisar me alimentar durante a noite. A viagem me deu uma enorme canseira.
A testa enrugada, Franco inclinou o ouvido para mais perto da porta, e escutou. Houve uma pausa e, em seguida, o homem chamado Rabicho tornou a falar.
— Milorde, posso perguntar quanto tempo vamos ficar aqui?
— Uma semana — disse a voz fria. — Talvez mais. O lugar é razoavelmente confortável, e ainda não podemos dar seguimento ao plano. Seria tolice agir antes do fim da Copa Mundial de Quadribol.
Franco meteu um dedo nodoso no ouvido e girou-o. Com certeza, devido ao acúmulo de cera, ele ouvira a palavra "Quadribol", uma palavra que não existia.
— A... A Copa Mundial de Quadribol, milorde? — admirou-se Rabicho. (Franco enfiou o dedo com mais força no ouvido.) — Me perdoe, mas... Não compreendo... Por que precisamos esperar o fim da Copa Mundial?
— Porque, seu tolo, neste exato momento estão chegando ao país bruxos do mundo inteiro e todos os bisbilhoteiros do Ministério da Magia estarão em campo, à procura de sinais de atividades incomuns, verificando identidades e tornando a verificá-las. Estarão obcecados com a segurança, tentando impedir que os trouxas percebam alguma coisa. Por isso vamos aguardar.
Franco parou de tentar desentupir o ouvido. Ouvira distintamente as palavras "Ministério da Magia", "bruxos" e trouxas. Era óbvio que cada uma dessas expressões significava alguma coisa secreta, e Franco só conseguia pensar em dois tipos de gente que falava em código — espiões e bandidos. Franco apertou mais a bengala e apurou ainda mais os ouvidos.
— Milorde continua decidido, então? — perguntou Rabicho em voz baixa.
— Claro que estou decidido, Rabicho. — Agora havia um tom de ameaça em sua voz fria.
Seguiu-se uma pausa — e então Rabicho falou, as palavras saíram de sua boca num atropelo, como se ele estivesse se obrigando a falar antes de perder a coragem.
— Poderia ser feito sem o Harry Potter, milorde.
Outra pausa, mais longa, e então...
— Sem o Harry Potter? — sussurrou a segunda voz. — Entendo...
— Milorde, não estou dizendo isso porque me preocupo com o garoto! -explicou Rabicho, a voz subindo esganiçada. — O garoto não significa nada para mim, nadinha! É só porque se usássemos outro bruxo ou bruxa, qualquer um, a coisa poderia ser feita muito mais rapidamente! Se o senhor me permitisse deixá-lo por algum tempo... O senhor sabe que posso me disfarçar com muita eficiência... Eu voltaria em apenas dois dias com a pessoa necessária...
— Eu poderia usar outro bruxo — disse a primeira voz, baixinho — é verdade...
— Milorde, faz sentido — disse Rabicho, parecendo muito mais aliviado — pôr as mãos em Harry Potter seria tão difícil, ele está tão bem protegido...
— E então você se oferece para ir buscar um substituto? Estranho... Talvez a tarefa de cuidar de mim tenha se tornado cansativa para você, Rabicho? A sugestão de abandonar o plano não seria apenas uma tentativa de me abandonar?
— Milorde! N... Não tenho nenhum desejo de deixá-lo, absolutamente nenhum...
— Não minta para mim! — sibilou a segunda voz. — Sempre percebo, Rabicho! Você está arrependido de ter voltado para mim. Eu o horrorizo. Vejo você fazer careta quando olha para mim, sinto você estremecer quando me toca...
— Não! Minha devoção a milorde...
— Sua devoção não passa de covardia. Você não estaria aqui se tivesse aonde ir. Como posso sobreviver sem você, quando preciso que alguém me alimente a intervalos regulares? Quem vai ordenhar Nagini?
— Mas o senhor parece tão mais forte, milorde...
— Mentiroso — sussurrou a segunda voz. — Não estou mais forte e uns poucos dias sozinho seriam suficientes para me roubar a pouca saúde que recuperei com os seus cuidados desajeitados. Silêncio!
Rabicho, que estivera resmungando incoerentemente, calou-se na mesma hora. Durante alguns segundos, Franco não ouviu nada exceto o crepitar do fogo.
Então o segundo homem recomeçou a falar, num sussurro que era quase um silvo.
— Tenho minhas razões para usar o garoto, como já lhe expliquei, e não vou usar mais ninguém. Esperei treze anos. Mais uns meses não me farão diferença. Quanto à proteção que rodeia o garoto, creio que o meu plano funcionará. Preciso apenas um pouco de coragem de sua parte, Rabicho, e você encontrará coragem, a menos que queira sentir o peso da cólera de Lord Voldemort...
— Milorde, tenho que falar! — disse Rabicho, agora com pânico na voz. — Durante a nossa viagem repassei mentalmente o plano, milorde, o desaparecimento de Berta Jorkins não passará despercebido por muito tempo, e se dermos seguimento a ele, se eu enfeitiçar...
— Se? — murmurou a primeira voz. — Se? Se você der seguimento ao plano, Rabicho, o Ministério jamais precisará saber que mais alguém desapareceu. Você fará isso em surdina, sem confusão; eu bem gostaria de fazer isso pessoalmente, mas na minha condição atual... Vamos, Rabicho, mais um obstáculo vencido, e o caminho até Harry Potter estará livre. Não estou pedindo que você aja sozinho. Até lá, o meu fiel servo terá se reunido a nós...
— Eu sou um servo fiel — disse Rabicho, com um levíssimo traço de aborrecimento na voz.
— Rabicho, preciso de alguém com cérebro, alguém que nunca tenha vacilado em sua lealdade, e você, infelizmente, não satisfaz nenhum dos dois requisitos.
— Eu o encontrei — disse Rabicho, e agora decididamente havia irritação em sua voz. — Fui eu que o encontrei. Fui eu que lhe trouxe Berta Jorkins.
— É verdade — disse o segundo homem, parecendo achar graça. — Um lance de genialidade que eu nunca teria achado possível em você, Rabicho, embora, a verdade seja dita, você não fizesse idéia do quanto ela seria útil quando a pegou, não é?
— Eu... Eu achei que ela poderia ser útil, milorde...
— Mentiroso — disse novamente a primeira voz, a zombaria cruel mais acentuada do que nunca. — Mas não nego que a informação da mulher foi preciosa. Sem ela, eu nunca poderia ter traçado o nosso plano, e por isso você terá a sua recompensa, Rabicho. Vou deixá-lo realizar uma tarefa essencial para mim, uma que muitos seguidores meus dariam a mão direita para realizar...
— V... Verdade, milorde! Qual...? — Rabicho parecia outra vez aterrorizado.
— Ah, Rabicho, você não quer que eu estrague a surpresa! Sua parte virá bem no finzinho... Mas, prometo que você terá a honra de ser tão útil quanto Berta Jorkins.
— O senhor... O senhor... — a voz de Rabicho saiu repentinamente rouca, como se sua boca tivesse ficado muito seca. — O senhor... Vai... Me matar, também?
— Rabicho, Rabicho — disse a voz fria suavemente —, por que eu iria matá-lo? Matei Berta porque precisei. Ela não servia para mais nada depois do meu interrogatório, completamente inútil. Em todo o caso, haveria perguntas embaraçosas se ela tivesse voltado ao Ministério com a notícia de que encontrara você nas férias. Seria melhor que bruxos presumivelmente mortos não esbarrassem em bruxas do Ministério da Magia em hotéis à beira de estradas...
Rabicho murmurou alguma coisa tão baixinho que Franco não pôde ouvir, mas fez o segundo homem rir — uma risada sem alegria, fria como a sua fala.
— Poderíamos ter alterado a memória dela? Mas os Feitiços da Memória podem ser desfeitos por um bruxo poderoso, como eu provei ao interrogá-la. Teria sido um insulto à memória da bruxa não usar as informações que ela me forneceu, Rabicho.
Fora no corredor, Franco de repente percebeu que a mão que segurava a bengala se tornara escorregadia de suor. O homem de voz fria tinha matado uma mulher.
E falava disso sem um pingo de remorso — divertia-se. Ele era perigoso — um doido. E estava planejando outros assassinatos — esse garoto, Harry Potter, fosse ele quem fosse — corria perigo...
O jardineiro sabia o que devia fazer. Agora, como nunca antes, estava na hora de ir a policia. Ele sairia silenciosamente da casa e iria direto à cabine telefônica no povoado... Mas a voz fria recomeçara a falar e Franco continuou onde estava, paralisado, escutando tudo que podia.
— Mais um feitiço... Meu fiel servo em Hogwarts... E Harry Potter será praticamente meu, Rabicho. Está decidido. Não haverá mais discussões. Mas fique quieto... Acho que ouvi Nagini...
E a voz do segundo homem mudou. Começou a emitir ruídos que Franco jamais ouvira na vida, sibilava e bufava sem inspirar. Franco achou que ele devia estar tendo algum tipo de ataque ou acesso.
E então o jardineiro ouviu um movimento às suas costas no corredor escuro. Virou-se para olhar e quedou paralisado de medo.
Alguma coisa deslizava em sua direção pelo chão escuro do corredor, e quando se aproximou da nesga de luz, ele percebeu, com um choque de terror, que era uma cobra gigantesca, no mínimo, com três metros de comprimento.
Apavorado, pregado no chão, ele viu aquele corpo ondulante abrir uma trilha larga e curva na poeira espessa do chão, sempre mais próximo, o que faria?
O único meio de fugir era entrar no quarto onde os dois homens estavam sentados planejando matar, mas se ele ficasse onde estava a cobra certamente o mataria...
Mas antes que se decidisse, a cobra emparelhou com ele e então, incrivelmente, milagrosamente, passou; orientava-se pelos silvos e bufos que a voz fria emitia do outro lado da porta e, em segundos, a ponta do rabo da cobra, malhada de losangos, desapareceu pela abertura.
Havia suor na testa de Franco agora e a mão na bengala tremia.
No quarto, a voz fria continuava a silvar, e ocorreu a Franco uma idéia estranha, uma idéia impossível... Esse homem podia falar com as cobras. Franco não entendia o que estava acontecendo. Queria mais do que tudo voltar para a cama com a sua bolsa de água quente. O problema é que suas pernas não pareciam querer se mexer.
Enquanto estava parado ali, trêmulo, tentando se controlar, a voz fria voltou de repente a falar em inglês.
— Nagini trouxe notícias interessantes, Rabicho.
— Ver... Verdade, milorde? — respondeu Rabicho.
— Verdade. Segundo Nagini, tem um velho trouxa parado do lado de fora do quarto, escutando cada palavra que dizemos.
Franco não teve a menor chance de se esconder. Ouviu passos e em seguida a porta do quarto se escancarou. Um homem baixo de cabelos grisalhos e ralos, um nariz pequeno e pontudo, olhos lacrimosos, parou diante dele com uma mescla de medo e susto no rosto.
— Convide-o a entrar, Rabicho. Onde está a sua educação?
A voz fria vinha de uma velha poltrona diante da lareira, mas Franco não conseguiu ver quem falava. A cobra, por sua vez, se enroscara no tapete podre diante da lareira, em uma medonha imitação de bichinho de estimação.
Rabicho fez sinal para Franco entrar. Embora continuasse profundamente abalado, Franco segurou com firmeza a bengala e, coxeando, cruzou o portal.
O fogo na lareira era a única fonte de luz no quarto; projetava sombras longas e aranhosas nas paredes. Franco fixou o olhar nas costas da poltrona; o homem sentado nela parecia ser ainda menor do que o seu criado, pois Franco não conseguia sequer ver a parte de trás de sua cabeça.
— Você ouviu tudo, trouxa? — perguntou a voz fria.
— Do que foi que o senhor me chamou? — perguntou Franco, desafiando-o, porque agora que estava dentro do quarto, agora que chegara a hora de agir, ele se sentia mais corajoso, sempre fora assim na guerra.
— Chamei-o de trouxa — disse a voz calmamente. — Isso quer dizer que você não é bruxo.
— Eu não sei o que o senhor quer dizer por trouxa — respondeu Franco, com a voz mais firme. — Só sei é que esta noite ouvi o suficiente para despertar o interesse da polícia, ah, isto eu ouvi, O senhor já matou uma vez e está planejando matar mais! E vou-lhe dizer outra coisa — acrescentou, numa súbita inspiração —, minha mulher sabe que estou aqui e se eu não voltar...
— Você não tem mulher — disse a voz fria, muito baixinho. — Ninguém sabe que você está aqui. Você não disse a ninguém que vinha. Não minta para Lord Voldemort, trouxa, porque ele sabe... Ele sempre sabe...
— É mesmo? — retrucou Franco com aspereza. — Lord é? Ora, não tenho muito respeito pelos seus modos, milorde. Vire-se e me encare como homem, por que não faz isso?
— Mas eu não sou homem, trouxa — retrucou a voz fria, quase inaudível devido ao crepitar das chamas. — Sou muito, muito mais do que um homem. Mas... Por que não? Vou encará-lo... Rabicho, venha virar minha poltrona. O servo deu um gemido.
— Você me ouviu, Rabicho.
Lentamente, com o rosto contraído, como se preferisse fazer qualquer coisa a ter que se aproximar do seu senhor e do tapete em que se deitara a cobra, o homenzinho se adiantou e começou a girar a cadeira. A cobra ergueu a feia cabeça triangular e sibilou baixinho quando as pernas da poltrona se prenderam no tapete.
E, então, a poltrona ficou de frente para Franco e ele viu o que havia nela.
Sua bengala caiu no chão com estrépito. Ele abriu a boca e soltou um grito. Gritou tão alto que nunca ouviu as palavras que a coisa na poltrona disse ao erguer a varinha. Houve um relâmpago de luz verde, um ruído farfalhante e Franco Bryce desabou. Morreu antes de bater no chão.
A trezentos quilômetros dali, o garoto chamado Harry Potter acordou assustado.

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