Posted by : Unknown junho 04, 2014

Capítulo 2


Há muitos quilômetros de distância, a névoa gelada que comprimia as vidraças do Primeiro-Ministro flutuava sobre um rio sujo que serpeava entre barrancos cobertos de mato e lixo. Uma enorme chaminé, relíquia de uma fábrica fechada, erguia-se sombria e agourenta. O silêncio total era quebrado apenas pelo rumorejo da água escura, e não havia vestígio de vida exceto por uma raposa esquelética que descera até o barranco na esperança de farejar um saco de peixe com fritas descartado no capim alto.
Então, com um leve estalo, uma figura magra e encapuzada se materializou na margem do rio. A raposa congelou, fixando os olhos assustados no estranho fenômeno. A figura pareceu se orientar por alguns instantes, então saiu andando com passos leves e ligeiros, sua longa capa farfalhando no capim.
Com um segundo estalo mais forte, outra figura encapuzada materializou-se.
— Espere!
O grito rouco alarmou a raposa, agora quase achatada no mato. Saltou do seu esconderijo e subiu o barranco. Houve um lampejo verde, um ganido, e o animal caiu ao chão, morto. A segunda figura virou o corpo do animal com a ponta do pé.
— É só uma raposa — disse sumariamente uma voz feminina por baixo do capuz. — Pensei que fosse um auror... Ciça, espere!
Mas a outra, que parara para olhar para trás ao perceber o lampejo, já estava subindo pelo barranco em que a raposa acabara de tombar.
— Ciça... Narcisa... escute...
A segunda mulher alcançou a primeira e agarrou-a pelo braço, mas esta se desvencilhou.
— Volte, Bela!
— Você precisa me escutar!
— Já escutei. Já me decidi. Me deixe em paz!
A mulher chamada Narcisa chegou ao alto do barranco, onde um gradil velho separava o rio de uma rua estreita calçada com pedras. A outra, Bela, continuou seguindo-a. Lado a lado, elas pararam, examinando na escuridão as fileiras de casas de tijolos aparentes, em ruínas, as janelas opacas e sem luz.
— Ele mora aqui? — perguntou Bela com desprezo na voz. — Aqui? Neste monturo dos trouxas? Devemos ser os primeiros da nossa raça a pisar...
Mas Narcisa não estava escutando; passara por uma abertura no gradil enferrujado e já atravessava a rua, apressada.
— Ciça, espere!
Bela acompanhou-a, sua capa enfunando às costas, e viu Narcisa embarafustar por um beco em meio ao casario e sair em outra rua quase idêntica. Alguns dos lampiões estavam quebrados, e as duas mulheres percorriam alternadamente trechos de luz e sombra profunda. Bela alcançou Narcisa quando virava mais uma esquina, conseguindo desta vez segurá-la e virá-la de modo a ficarem frente a frente.
— Ciça, você não deve fazer isso, não pode confiar nele...
— O Lorde das Trevas confia nele, não é?
— O Lorde das Trevas está... acho... enganado — ofegou Bela, e seus olhos brilharam momentaneamente sob o capuz quando correu um olhar a toda volta para verificar se estavam de fato sozinhas. — Seja como for, recebemos ordens para não discutir o plano com ninguém. Isto é uma traição à diretriz...
— Me largue, Bela! — bradou Narcisa, puxando uma varinha de dentro da capa e apontando-a ameaçadoramente para o rosto da outra. Bela apenas sorriu.
— Ciça, sua própria irmã? Você não faria...
— Não há mais nada que eu não faça! — sussurrou Narcisa, com uma nota de histeria na voz, e, quando baixou a varinha como se fosse uma faca, houve mais um lampejo. Bela soltou o braço da irmã como se houvesse recebido uma queimadura.
— Narcisa!
Narcisa, contudo, prosseguira seu caminho, apressada. Esfregando a mão, a irmã perseguiu-a, mantendo distância enquanto se aprofundavam no labirinto deserto de casas de tijolos aparentes. Por fim, Narcisa precipitou-se pela Rua da Fiação, sobre a qual pairava a alta chaminé fabril como um gigantesco dedo em riste. Seus passos ecoaram nas pedras do calçamento ao passar por janelas partidas e fechadas com tábuas, até chegar à última casa, onde uma luz fraca se filtrava pelas cortinas de um aposento térreo.
Ela batera na porta antes que Bela, xingando baixinho, a alcançasse. Juntas, esperaram ligeiramente ofegantes, respirando o mau cheiro do rio sujo que a brisa noturna trazia às suas narinas. Passados alguns segundos, ouviram um movimento do lado de dentro da porta que se entreabriu. Viram um homem mirrado espiando-as, um homem com longos cabelos pretos repartidos ao meio que formavam cortinas emoldurando-lhe o rosto emaciado e os olhos pretos.
Narcisa baixou o capuz. Era tão pálida que parecia refulgir na escuridão; a cabeleira loura descia pelas costas, dando-lhe a aparência de uma mulher afogada.
— Narcisa! — exclamou o homem, abrindo um pouco mais a porta, de modo que a luz incidisse sobre ela e a irmã. — Que surpresa agradável!
— Severo — ela sussurrou tensa. — Posso falar com você? É urgente.
— Mas é claro.
Ele recuou para deixá-la entrar. A irmã, ainda encapuzada, acompanhou-a mesmo sem convite.
— Snape — cumprimentou secamente ao passar.
— Belatriz — respondeu ele, os lábios finos encrespando-se em um sorriso ligeiramente zombeteiro, ao fechar a porta, depois que as mulheres passaram.
Tinham entrado diretamente em uma pequena sala de visitas, que dava a impressão de uma cela acolchoada e escura. As paredes eram inteiramente cobertas de livros, a maioria encadernada em couro preto ou castanho; um sofá puído, uma poltrona velha e uma mesa bamba estavam agrupados no círculo de luz projetado por um candeeiro preso no teto. O lugar tinha um ar de abandono, como se não fosse normalmente habitado.
Snape indicou o sofá a Narcisa. Ela despiu a capa, atirou-a para um lado e se sentou, olhando para as mãos brancas e trêmulas que cruzara ao colo. Belatriz baixou o capuz mais lentamente. Tão morena quanto a irmã era clara, as pálpebras pesadas e o maxilar pronunciado, ela não desviou os olhos de Snape quando foi se postar atrás de Narcisa.
— Então, em que posso lhe ser útil? — perguntou Snape, acomodando-se na poltrona defronte às duas irmãs.
— Nós... nós estamos sozinhos? — perguntou Narcisa em voz baixa.
— Claro que sim. Bem, Rabicho está aqui, mas não estamos contando os vermes, não é mesmo?
Ele apontou a varinha para a parede revestida de livros às suas costas e, com um estampido, uma porta oculta se escancarou, revelando uma escada estreita onde estava parado um homem pequeno.
— Como você já percebeu claramente, Rabicho, temos visitas — disse Snape sem pressa.
O homem desceu encurvado os últimos degraus e entrou na sala. Tinha olhos miúdos e lacrimosos, um nariz arrebitado e um sorrisinho incômodo. Sua mão esquerda acariciava a direita, que parecia estar calçada com uma reluzente luva prateada.
— Narcisa! — cumprimentou com uma vozinha aguda. — E Belatriz! Que prazer...
— Rabicho vai nos servir uma bebida, se aceitarem — disse Snape. — Depois voltará para o quarto.
Rabicho fez uma careta, como se Snape tivesse atirado alguma coisa nele.
— Não sou seu empregado! — guinchou, evitando olhar para o outro.
— Sério? Tive a impressão de que o Lorde das Trevas colocou-o aqui para me ajudar.
— Ajudar, sim, mas não preparar bebidas nem limpar sua casa!
— Eu não fazia idéia, Rabicho, que você sonhasse com tarefas mais arriscadas — respondeu Snape melosamente. — Podemos providenciar isso sem demora: falarei com o Lorde das Trevas...
— Posso falar com ele eu mesmo, se quiser!
— Claro que pode — debochou Snape. — Mas enquanto não faz isso, traga as bebidas. Bastará um pouco de vinho dos elfos.
Rabicho hesitou um momento, como se fosse protestar, mas, então, virou-se e entrou por outra porta oculta. Ouviram-se algumas batidas e o tilintar de copos. Segundos depois ele retornava, trazendo em uma bandeja uma garrafa empoeirada e três copos. Depositou-os na mesa bamba e se retirou depressa, batendo a porta recoberta de livros ao passar.
Snape serviu o vinho vermelho-sangue nos três copos e entregou dois às irmãs. Narcisa murmurou um agradecimento e Belatriz nada disse, mas continuou a encarar Snape mal-humorada. Isto não pareceu perturbá-lo; muito ao contrário, dava a impressão de diverti-lo.
— Ao Lorde das Trevas — brindou ele, erguendo o copo e esvaziando-o de um gole.
As irmãs o imitaram. Snape tornou a encher os copos. Quando Narcisa recebeu o dela, falou ansiosa:
— Severo, me desculpe vir aqui dessa maneira, mas precisava ver você. Acho que é o único que pode me ajudar...
Snape ergueu a mão para interrompê-la, então tornou a apontar a varinha para a porta oculta que abria para a escada. Ouviu-se um estampido forte e um guincho, seguido do ruído dos passos apressados de Rabicho subindo a escada.
— Peço desculpas — disse Snape. — Ultimamente ele deu para ficar escutando às portas. Não sei o que pretende... mas o que era que você ia dizendo, Narcisa?
— Severo, sei que não devia estar aqui, recebi ordens para não comentar nada com ninguém, mas...
— Então deveria segurar sua língua! — vociferou Belatriz. — Principalmente diante de quem estamos!
— De quem estamos? — repetiu Snape em tom de zombaria. — E que devo entender por essa ressalva, Belatriz?
— Que eu não confio em você, Snape, e você sabe muito bem disso!
Narcisa deixou escapar um som que poderia ser um soluço seco e cobriu o rosto com as mãos. Snape descansou seu copo na mesa e tornou a se acomodar, as mãos nos braços da poltrona, sorrindo para o rosto zangado de Belatriz.
— Narcisa, acho que devíamos escutar o que Belatriz está doida para dizer; assim pouparemos monótonas interrupções. Bem, continue, Belatriz — incentivou Snape. — Por que não confia em mim?
— Por centenas de razões! — respondeu a mulher em voz alta, saindo de trás do sofá e batendo o copo na mesa. — Por onde devo começar? Onde é que você estava quando o Lorde das Trevas caiu? Por que não fez o menor esforço para encontrá-lo quando desapareceu? Que esteve fazendo todos esses anos em que viveu no bolso de Dumbledore? Por que impediu o Lorde das Trevas de obter a Pedra Filosofal? Por que não voltou imediatamente quando ele ressuscitou? Onde estava há umas semanas, quando travamos uma batalha para recuperar a profecia para o Lorde das Trevas? E, Snape, por que Harry Potter continua vivo, quando você o tem nas mãos há cinco anos?
A mulher fez uma pausa, o rosto muito vermelho, o peito arfando em movimentos rápidos. Atrás dela, Narcisa sentava-se imóvel, o rosto ainda escondido nas mãos.
Snape sorriu.
— Antes de lhe responder... ah, sim, vou lhe responder, Belatriz! E você pode repetir minhas palavras para os outros que cochicham às minhas costas e levam ao Lorde das Trevas histórias mentirosas sobre a minha traição! Mas, antes de responder, me permita uma pergunta. Você realmente acredita que o Lorde das Trevas já não me fez cada uma dessas perguntas? E realmente acredita que, se eu não as tivesse respondido satisfatoriamente, estaria aqui falando com você?
A mulher hesitou.
— Eu sei que ele acredita em você, mas...
— Você acha que ele está enganado? Ou que consegui cegá-lo de alguma maneira? Que iludi o Lorde das Trevas, o maior bruxo do mundo, o Legilimens mais talentoso que o mundo já viu?
Belatriz não respondeu, mas pareceu, pela primeira vez, um pouco desconcertada. Snape não insistiu. Tornou a apanhar sua bebida, tomou um golinho e continuou:
— Você me pergunta onde eu estava quando o Lorde das Trevas caiu. Eu estava onde ele tinha me mandado ficar, na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, porque queria que eu espionasse Alvo Dumbledore. Sabe, eu suponho que tenha sido por ordem do Lorde das Trevas que eu assumi esse posto, não?
Belatriz fez um aceno quase imperceptível com a cabeça e abriu a boca para falar, mas Snape antecipou-se.
— Você pergunta por que não tentei encontrá-lo quando ele desapareceu. Pela mesma razão que Avery, Yaxley, os Carrow, Greyback, Lúcio — ele indicou Narcisa com um curto aceno de cabeça — e muitos outros não tentaram encontrá-lo. Acreditamos que tivesse sido liquidado. Não me orgulho disso, errei, mas veja como são as coisas... se ele não tivesse perdoado aos que perderam a fé nele, teriam lhe restado muito poucos seguidores.
— Ele teria a mim! — exclamou Belatriz apaixonadamente. — Eu, que passei tantos anos em Azkaban por causa dele!
— De fato, é admirável — disse Snape entediado. — Naturalmente você não teve muita utilidade para ele na prisão, mas foi sem dúvida um belo gesto...
— Gesto! — guinchou ela, que parecia enlouquecida de fúria. — Enquanto eu suportava os dementadores, você continuava em Hogwarts confortavelmente, brincando de bichinho de estimação de Dumbledore.
— Não foi bem assim — retorquiu Snape calmamente. — Ele não quis me dar o cargo de professor de Defesa contra as Artes das Trevas, sabe. Deve ter pensado que isso pudesse provocar em mim uma, ah, recaída... me seduzisse a retomar minhas crenças anteriores.
— Foi esse o seu sacrifício pelo Lorde das Trevas, ser privado de ensinar a sua disciplina favorita? — zombou Belatriz. — E por que você permaneceu em Hogwarts todo esse tempo? Continuou espionando Dumbledore para um senhor que você acreditava morto?
— É pouco provável, mas o Lorde das Trevas se mostrou satisfeito que eu nunca tenha desertado o meu posto: acumulei dezesseis anos de informação sobre Dumbledore para lhe passar quando voltou, um presente de boas-vindas bem mais útil do que as infindáveis lembranças sobre Azkaban e tudo que tinha de desagradável...
— Mas você ficou...
— Sim, Belatriz, fiquei — confirmou Snape, pela primeira vez traindo um quê de impaciência. — Recebi uma tarefa confortável que achei preferível a uma temporada em Azkaban. Estavam capturando os Comensais da Morte, sabe. A proteção de Dumbledore me manteve fora da prisão, foi muito conveniente e me aproveitei disso. Repito: o Lorde das Trevas não reclama de eu ter ficado, portanto não vejo por que você há de se queixar.
“E acho que você também queria saber”, continuou ele, alteando a voz porque Belatriz fazia menção de interrompê-lo, “por que me interpus ao Lorde das Trevas e à Pedra Filosofal. É fácil responder. Ele não sabia se podia confiar em mim. Achou, como você, que de fiel Comensal da Morte eu me transformara em espião de Dumbledore. Ele estava em condição deplorável, muito fraco, compartilhava o corpo de um bruxo medíocre. Não ousou se mostrar a um antigo aliado, temendo que esse aliado pudesse entregá-lo a Dumbledore ou ao Ministério. Lamento profundamente que não confiasse em mim. Ele teria recuperado o poder três anos antes. Do jeito que foi, vi apenas o ambicioso e indigno Quirrell tentando roubar a Pedra e, admito, fiz tudo que pude para impedir.”
Belatriz entortou a boca como se tivesse tomado um remédio de gosto ruim.
— Mas você não foi ao encontro dele quando ele voltou, não se reuniu a ele imediatamente quando sentiu a Marca Negra arder...
— Verdade. Fui duas horas depois. E por ordem de Dumbledore.
— Por ordem de Dum...? — começou ela em tom indignado.
— Pense! — disse Snape, impacientando-se de novo. — Pense! Esperando duas horas, apenas duas horas, garanti minha permanência em Hogwarts como espião! Deixando Dumbledore pensar que eu só estava retornando para o lado do Lorde das Trevas por ordem dele, pude passar informações sobre Dumbledore e a Ordem da Fênix desde então! Reflita Belatriz: a Marca Negra foi se acentuando durante meses, eu sabia que a volta do Lorde era iminente, todos os Comensais da Morte sabiam disso! Tive muito tempo para pensar no que queria fazer, planejar o meu lance seguinte, me safar como fez Karkaroff, não?
“Posso lhe garantir que o desagrado inicial do Lorde das Trevas com o meu atraso desapareceu completamente, quando lhe expliquei que eu ainda era fiel, e Dumbledore continuou achando que eu era o seu homem de confiança. O Lorde das Trevas de fato pensou que eu o tivesse abandonado para sempre, mas viu que estava errado.”
— Mas no que é que você tem sido útil? — desdenhou Belatriz. — Que informações úteis você tem nos passado?
— Minhas informações têm sido transmitidas diretamente ao Lorde das Trevas. Se ele prefere não dividi-las com você...
— Ele divide tudo comigo! — disse Belatriz, inflamando-se. — Diz que sou a mais leal, mais fiel...
— Diz? — perguntou Snape, a voz subindo levemente para insinuar sua descrença. — E ainda divide, depois do fiasco no Ministério da Magia?
— Aquilo não foi minha culpa! — protestou Belatriz corando. — No passado, o Lorde das Trevas me confiou seu bemmais precioso... se Lúcio não tivesse...
— Não se atreva... não se atreva a culpar meu marido! — disse Narcisa em tom baixo e letal, erguendo os olhos para a irmã.
— Não vale a pena atribuir culpas — disse Snape com suavidade. — O que foi feito está feito.
— Mas não por você! — bradou Belatriz furiosa. — Não, você esteve mais uma vez ausente enquanto nós corríamos riscos, não é mesmo, Snape?
— Recebi ordens para permanecer na retaguarda. Quem sabe você discorda do Lorde das Trevas, quem sabe você acha que Dumbledore não teria reparado se eu fosse me reunir aos Comensais da Morte para combater a Ordem da Fênix? E... me desculpe... mas você fala de riscos... você esteve enfrentando seis adolescentes, não?
— Aos quais foi se juntar, logo em seguida, e não finja que não sabe, metade da Ordem! — rosnou Belatriz. — E, por falar nisso, você continua a insistir que não pode revelar onde é o quartel-general da Ordem, não é mesmo?
— Não sou o fiel do segredo, não posso dizer o nome do lugar. Acho que você sabe como funcionam os feitiços, não? O Lorde das Trevas está satisfeito com as informações que lhe passei sobre a Ordem. Permitiram, como você talvez tenha imaginado, a captura recente de Emelina Vance, e, sem sombra de dúvida, a eliminação de Sirius Black, embora eu dê a você todo o crédito pela execução dele.
Snape inclinou a cabeça e fez um brinde à Belatriz. A expressão da mulher não se abrandou.
— Você está evitando a minha última pergunta, Snape. Harry Potter. Você poderia ter matado o garoto em qualquer momento nos últimos cinco anos. Mas não matou. Por quê?
— Você já discutiu este assunto com o Lorde das Trevas?
— Ele... ultimamente... estou perguntando a você, Snape.
— Se eu tivesse matado Harry Potter, o Lorde das Trevas não poderia ter usado o sangue dele para se regenerar e se tornar invencível...
— Você está afirmando que previu o uso que ele faria do garoto? — caçoou Belatriz.
— Não estou afirmando; eu não tinha a menor idéia dos planos dele; já confessei que julgava o Lorde das Trevas morto. Estou meramente tentando explicar por que o Lorde das Trevas não lamentou que Potter tenha sobrevivido, pelo menos até um ano atrás...
— Mas por que você o deixou vivo?
— Você ainda não me entendeu? Foi a proteção de Dumbledore que me manteve fora de Azkaban. Você discorda que se eu tivesse matado seu aluno favorito ele teria se voltado contra mim? Mas havia outras razões. Devo lembrar-lhe que quando Potter chegou a Hogwarts ainda circulavam muitas histórias a respeito dele, boatos de que era um grande bruxo das trevas, e por isso tinha sobrevivido ao ataque do Lorde das Trevas. De fato, muitos dos antigos seguidores do Lorde das Trevas pensavam que talvez fosse uma bandeira em torno da qual poderíamos nos reagrupar. Admito que fiquei curioso e nada inclinado a matá-lo quando desembarcou no castelo.
“É claro que rapidamente percebi que ele não possuía nenhum talento extraordinário. Conseguiu sair de muitos apertos graças a uma simples combinação de pura sorte e a ajuda de amigos mais talentosos. Ele é medíocre ao extremo, e detestável e presunçoso como foi o pai. Fiz tudo para que fosse expulso de Hogwarts, onde acredito não ser o seu lugar, mas matá-lo ou permitir que o matassem na minha frente? Eu teria sido idiota de me arriscar com o Dumbledore por perto.”
— E dizendo isso você quer nos fazer acreditar que Dumbledore nunca suspeitou de você? Não faz a menor idéia de sua verdadeira lealdade; continua a confiar irrestritamente em você?
— Representei bem o meu papel — afirmou Snape. — E você está se esquecendo da maior fraqueza de Dumbledore: acreditar no melhor das pessoas. Contei-lhe uma história de profundo remorso quando entrei para o seu quadro docente, recém-saído dos meus dias de Comensal da Morte, e ele me recebeu de braços abertos... embora, como disse, sem deixar que eu me aproximasse das artes das trevas até onde pôde impedir. Dumbledore foi um grande bruxo, ah, sim, foi (porque Belatriz deixara escapar um ruído sarcástico), e o próprio Lorde das Trevas reconhece isso. Mas fico feliz de poder afirmar que está envelhecendo. O duelo com o Lorde das Trevas no mês passado abalou-o. Deve ter sofrido um grave ferimento porque suas reações estão mais lentas do que no passado. Mas, durante todos esses anos, ele nunca deixou de confiar em Severo Snape e nisto reside o meu grande valor para o Lorde das Trevas.
Belatriz continuava insatisfeita, embora insegura quanto à melhor maneira de continuar atacando Snape. Aproveitando-se do seu silêncio, o bruxo se dirigiu à irmã.
— Agora... você veio me pedir ajuda, Narcisa?
A bruxa ergueu os olhos para ele, seu rosto eloqüente de desespero.
— Vim, Severo. Acho... acho que você é o único que pode me ajudar. Não tenho mais ninguém a quem recorrer. Lúcio está preso e...
Ela fechou os olhos e duas grandes lágrimas escorreram por baixo de suas pálpebras.
— O Lorde das Trevas me proibiu de falar nisso — continuou, com os olhos ainda fechados. — Não quer que ninguém saiba do plano. É... muito secreto. Mas...
— Se ele proibiu, você não deve falar — disse Snape imediatamente. — A palavra do Lorde das Trevas é lei.
Narcisa ofegou como se tivesse recebido um esguicho de água fria. Belatriz pareceu satisfeita pela primeira vez desde que entrara na casa.
— Ouviu? — disse triunfante à irmã. — Até Snape diz isso: você recebeu ordem de não falar, então fique calada!
Snape, porém, tinha se levantado e ido até a pequena janela. Espiou a rua deserta entre as cortinas e tornou a fechá-las com um puxão. Virou-se, então, para encarar Narcisa muito sério.
— Por acaso, eu conheço o plano — disse em voz baixa. — Sou um dos poucos a quem o Lorde das Trevas o contou. Mas, se eu não estivesse a par do segredo, Narcisa, você teria cometido uma grande traição.
— Achei que você devia conhecer! — exclamou Narcisa, respirando mais aliviada. — Ele confia tanto em você, Severo...
— Você conhece o plano? — admirou-se Belatriz, sua momentânea expressão de prazer substituída pela mais pura indignação. — Você conhece?
— Com certeza — afirmou Snape. — Mas qual é a ajuda de que você precisa, Narcisa? Se está imaginando que posso persuadir o Lorde das Trevas a mudar de idéia, receio que não haja a menor esperança.
— Severo — sussurrou ela, as lágrimas deslizando pelo rosto pálido. — Meu filho... meu único filho...
— Draco devia se orgulhar — disse Belatriz com indiferença. — O Lorde das Trevas está lhe concedendo uma grande honra. E direi uma coisa em favor do seu filho: ele não está fugindo ao dever, parece contente com a oportunidade de ser posto à prova, excitado com a perspectiva...
Narcisa começou a chorar com vontade, sem tirar os olhos suplicantes de Snape.
— E porque ele tem apenas dezesseis anos e não faz idéia do que o espera! Por que, Severo? Por que o meu filho? É perigoso demais! É vingança pelo erro de Lúcio, eu sei que é!
Snape não respondeu. Desviou o olhar das lágrimas da mulher como se fossem indecentes, mas não pôde fingir que não a ouvia.
— Foi por isso que ele escolheu o Draco, não foi? — insistiu. — Para punir Lúcio?
— Se Draco for bem-sucedido — respondeu Snape, ainda sem olhar para Narcisa —, será mais prestigiado que todos os outros.
— Mas ele não será bem-sucedido! — soluçou Narcisa. — Como pode ser quando o próprio Lorde das Trevas...?
Belatriz soltou uma exclamação; Narcisa pareceu perder a coragem.
— Só quis dizer... que ninguém teve êxito até agora... Severo... por favor... você é, e sempre foi, o professor favorito de Draco... você é um velho amigo de Lúcio... eu lhe suplico... você é o favorito do Lorde, o conselheiro em quem ele mais confia... quer falar com ele, persuadi-lo...?
— O Lorde das Trevas não se deixa persuadir, e não sou bastante tolo para tentar — disse Snape sem emoção. — Não posso fingir que ele não esteja aborrecido com Lúcio. Seu marido controlava a operação. Ele se deixou capturar juntamente com os demais e, ainda por cima, não conseguiu recuperar a profecia. Com certeza o Lorde das Trevas está irritado, Narcisa, muito irritado mesmo.
— Então tenho razão, ele escolheu Draco para se vingar! — disse Narcisa com a voz sufocada. — Não quer que ele seja bem-sucedido, quer que ele morra tentando.
Não ouvindo resposta de Snape, Narcisa pareceu perder o pouco controle que lhe restava. Levantando-se, cambaleou até Snape e agarrou-o pelas vestes. Com o rosto muito próximo ao dele, as lágrimas caindo no peito do bruxo, ela exclamou:
— Você poderia fazer isso. Você em vez de Draco, Severo. Você teria sucesso, e ele o recompensaria mais do que a qualquer um...
Snape segurou-a pelos pulsos e afastou as mãos que agarravam suas vestes. Baixando os olhos para o rosto manchado de lágrimas, disse lentamente:
— Acho que a intenção dele é me mandar tentar depois. Mas decidiu que Draco deve tentar primeiro. Sabe, no improvável acaso de Draco se sair bem, eu poderei permanecer em Hogwarts por mais algum tempo, desempenhando o meu proveitoso papel de espião.
— Em outras palavras, não faz diferença para ele se Draco morrer!
— O Lorde das Trevas está muito irritado — repetiu Snape em voz baixa. — Não conseguiu ouvir a profecia. Você sabe tão bem quanto eu que ele não perdoa facilmente.
Ela desmoronou aos pés dele, soluçando e gemendo.
— Meu único filho... meu único filho...
— Você devia se orgulhar! — exclamou Belatriz sem se apiedar. — Se eu tivesse filhos, eu os daria para servir o Lorde das Trevas!
Narcisa soltou um grito de desespero e agarrou os próprios cabelos com força. Snape se curvou, segurou a mulher pelos braços, levantou-a e sentou-a no sofá. Serviu mais um pouco de vinho e empurrou o copo na mão dela.
— Narcisa, chega. Beba isso. E me escute.
Ela se acalmou um pouco; deixando cair vinho nas vestes, tomou um golinho, trêmula.
— Talvez seja possível... ajudar o Draco.
Ela se empertigou, o rosto branco como uma folha de papel, os olhos arregalados.
— Severo... ah, Severo... você o ajudaria? Você o protegeria, cuidaria para que não sofresse nenhum mal?
— Posso tentar.
Ela largou o copo, que deslizou pelo tampo da mesa, ao mesmo tempo que, escorregando do sofá e se ajoelhando aos pés de Snape, segurou suas mãos e levou-as aos lábios.
— Se você estiver lá para protegê-lo... Severo, você jura? Você fará o Voto Perpétuo?
— O Voto Perpétuo? — O rosto de Snape se tornou impassível, impenetrável. Belatriz, porém, soltou uma gargalhada vitoriosa.
— Você ouviu bem, Narcisa? Ah, ele tentará, com certeza... as palavras vazias de sempre de quem tira o corpo fora... ah, e por ordem do Lorde das Trevas, é claro!
Snape não olhou para Belatriz. Seus olhos negros estavam fixos nos olhos azuis marejados de lágrimas de Narcisa, que ainda lhe apertava as mãos.
— Certamente, Narcisa, farei o Voto Perpétuo — disse baixinho. — Talvez, sua irmã aceite ser a nossa Avalista.
O queixo de Belatriz caiu. Snape se ajoelhou à frente de Narcisa. Diante do olhar assombrado de Belatriz, eles uniram as mãos direitas.
— Você vai precisar de sua varinha, Belatriz — disse Snape friamente. A bruxa, ainda espantada, puxou a varinha.
— E vai precisar chegar um pouco mais perto — acrescentou ele. Belatriz se aproximou dos dois, e colocou a ponta da varinha sobre as mãos unidas. Narcisa falou:
— Você, Severo, cuidará do meu filho Draco quando ele estiver tentando realizar o desejo do Lorde das Trevas?
— Cuidarei.
Uma fina língua de fogo-vivo saiu da varinha e envolveu as mãos como um arame em brasa.
— E fará todo o possível para protegê-lo do mal?
— Farei.
Uma segunda língua de fogo saiu da varinha e se entrelaçou com a primeira, formando uma fina corrente luminosa.
— E se necessário for... se parecer que Draco falhará — sussurrou Narcisa (a mão de Snape estremeceu, mas ele não a soltou) —, você terminará a tarefa que o Lorde das Trevas incumbiu Draco de realizar?
Houve um momento de silêncio. Com a varinha sobre as mãos unidas dos dois, Belatriz observava de olhos arregalados.
— Terminarei — jurou Snape.
O rosto estarrecido de Belatriz se avermelhou, refletindo o clarão da terceira língua de fogo que saiu da varinha, enrolou-se nas outras e se fechou em torno das mãos, grossa como uma corda, como uma serpente de fogo.

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