Posted by : Unknown junho 04, 2014

Capítulo 3


Harry Potter roncava sonoramente. Estivera sentado em uma poltrona à janela do seu quarto durante quase quatro horas, contemplando a rua que escurecia, e acabara adormecendo com um lado do rosto encostado na vidraça fria, os óculos tortos e a boca aberta. O bafo que ele exalava refulgia à claridade alaranjada do lampião da rua, e a luz artificial absorvia todo o colorido do seu rosto, fazendo-o parecer fantasmagórico sob seus cabelos pretos e rebeldes.
O quarto estava amontoado com seus pertences e uma boa quantidade de lixo. Penas de coruja, miolos de maçãs e papéis de bala amontoavam-se pelo soalho, vários livros de feitiços estavam embolados com as vestes sobre sua cama, e havia uma confusão de jornais no círculo iluminado sobre sua escrivaninha. A manchete de um deles indagava:

HARRY POTTER: SERÁ ELE O ELEITO?
Continua a boataria sobre acontecimentos recentes e misteriosos no Ministério da Magia, durante os quais Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado foi mais uma vez avistado.
“Não podemos comentar, não me pergunte nada”, disse um agitado obliviador que se recusou a informar o seu nome quando saía ontem à noite do Ministério.
Ainda assim, fontes ministeriais confirmam que o foco do distúrbio foi a famosa Sala da Profecia.
Embora os porta-vozes oficiais continuem a se recusar sequer a confirmar a existência de tal sala, um número cada vez maior de pessoas na comunidade bruxa acredita que os Comensais da Morte, ora cumprindo pena em Azkaban por invasão e tentativa de roubo, tentaram se apoderar da profecia, cujo teor é desconhecido. Especula-se abertamente, no entanto, que deve dizer respeito a Harry Potter, a única pessoa que sabidamente sobreviveu a Maldição da Morte, e dizem ter estado no Ministério na noite em questão. Há quem se aventure a chamar Potter de “o Eleito”, acreditando que a profecia o nomeie como o único que poderá nos livrar de Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado.
Não se conhece o atual paradeiro da profecia, se é que de fato existe, embora (cont. p. 2, coluna 5)

Havia um segundo jornal ao lado do primeiro. A manchete era: SCRIMGEOUR SUBSTITUI FUDGE
A maior parte da primeira página estava tomada por uma grande foto em preto e branco de um homem com uma juba leonina e um rosto maltratado. A foto era comovente — ele estava acenando para o teto.

Rufo Scrimgeour, ex-chefe da Seção de Aurores, no Departamento de Execução das Leis da Magia, substitui Cornélio Fudge no Ministério da Magia. A nomeação foi recebida com entusiasmo pela maioria na comunidade bruxa, embora corram boatos de um sério desentendimento entre o novo ministro e Alvo Dumbledore — reconduzido ao cargo de bruxo-presidente da Suprema Corte dos Bruxos — ocorrido algumas horas depois de Scrimgeour ter assumido o Ministério. Os representantes de Scrimgeour admitem que o ministro se encontrou com Dumbledore logo após sua posse no mais alto cargo da comunidade, mas recusaram-se a comentar a pauta da reunião. Sabe-se que Alvo Dumbledore (cont. p. 3, coluna 2)
Mais à esquerda deste jornal, havia outro, dobrado de modo a deixar visível o título da notícia:

MINISTRO GARANTE A SEGURANÇA DOS ESTUDANTES.
O recém-nomeado ministro da Magia, Rufo Scrimgeour, falou hoje sobre as rigorosas medidas tomadas pelo seu Ministério para garantir a segurança dos estudantes que retornam agora, no outono, à Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.
“Por razões óbvias, o Ministério não poderá entrar em detalhes sobre seu rigoroso projeto de segurança”, disse o ministro, embora um funcionário bem informado confirme que as medidas incluem feitiços e encantamentos defensivos, um complexo conjunto de contra-feitiços e uma pequena força-tarefa de aurores, dedicados unicamente à proteção da Escola de Hogwarts.
A maioria dos cidadãos parece tranqüilizada pela firme atitude do ministro com relação à segurança estudantil. Comentou a Sra. Augusta Longbottom: “Meu neto Neville, por sinal um grande amigo de Harry Potter, que lutou ao lado dele em junho no Ministério contra os Comensais da Morte e...”

Mas o resto desta história ficou sombreada por uma enorme gaiola deixada em cima do jornal, dentro da qual havia uma magnífica coruja de penas muito brancas. Seus olhos cor de âmbar examinavam o quarto autoritariamente, a cabeça virando de vez em quando para olhar o dono que roncava. Uma ou duas vezes, ela abriu e fechou o bico com estalos, impaciente, mas Harry estava dormindo profundamente demais para ouvi-la.
Havia, ainda, um malão bem no meio do quarto, com a tampa aberta, parecendo aguardar alguma coisa. Estava quase vazio, exceto por umas cuecas velhas, balas, tinteiros vazios e penas quebradas que forravam o seu fundo. No chão, à pequena distância, via-se caído um folheto roxo com um brasão em que se lia:

Por ordem do Ministério da Magia
PARA PROTEGER SUA CASA E SUA FAMÍLIA DAS FORÇAS DAS TREVAS
Atualmente a comunidade bruxa está sendo ameaçada por uma organização que se autodenomina Comensais da Morte. Observando simples diretrizes de segurança, você poderá proteger a si mesmo, a sua família e a sua casa de qualquer ataque.
1. Recomendamos que você não saia de casa sozinho.
2. Tome especial cuidado durante a noite. Sempre que possível, programe suas viagens para começarem e terminarem antes do anoitecer.
3. Repasse as medidas de segurança que cercam a sua casa, cuidando para que todos os membros de sua família conheçam os procedimentos de emergência, tais como os feitiços Escudo e da Desilusão e, em caso de familiares de menor idade, a Aparatação Acompanhada.
4. Combine senhas com seus familiares e amigos íntimos para detectar Comensais da Morte que se façam passar por outras pessoas após a ingestão da Poção Polissuco(veja p. 2).
5. Se você sentir que um familiar, colega, amigo ou vizinho está agindo de modo estranho, entre imediatamente em contato com o Esquadrão de Execução das Leis da Magia. Ele ou ela talvez esteja dominado/a pela Maldição Imperius (veja p. 4).
6. Se a Marca Negra aparecer pairando sobre qualquer prédio, NÃO ENTRE. Contate imediatamente a Seção dos Aurores.
7. A visão de objetos não identificados sugere que os Comensais da Morte talvez estejam usando Inferi (veja p. 10). Se avistar ou encontrar algum, reporte ao Ministério IMEDIATAMENTE.

Harry resmungou enquanto dormia, e seu rosto escorregou uns centímetros pela vidraça, deixando os óculos ainda mais tortos, mas nem assim ele acordou. Um despertador, consertado por ele mesmo, há tempos, tiquetaqueava sonoramente no parapeito da janela, indicando que faltava um minuto para as onze horas. Ao lado do despertador, segura na mão frouxa de Harry, havia uma folha de pergaminho escrita com uma caligrafia fina e inclinada. Harry lera esta carta tantas vezes desde que chegara havia três dias que, embora fosse um pergaminho bem enrolado, ficara completamente esticado.

Caro Harry,
Se for conveniente para você, farei uma visita à Rua dos Alfeneiros, número 4, na próxima sexta-feira, as onze horas da noite, para acompanhá-lo à Toca, onde você está convidado a passar o resto de suas férias escolares.
Se concordar, eu gostaria também de poder contar com sua ajuda em um assunto que espero tratar a caminho d’A Toca. Explicarei melhor quando nos virmos.
Por favor, mande sua resposta pela mesma coruja. Espero vê-lo na sexta-feira.
Muito atenciosamente,
Alvo Dumbledore

Embora já a soubesse de cor, Harry não parava de relancear a carta desde as sete horas daquela noite, quando se instalara junto à janela do quarto, porque esta lhe oferecia uma visão razoável dos dois lados da rua dos Alfeneiros. Ele sabia que não adiantava ficar relendo as palavras de Dumbledore; mandara o seu “sim” pela coruja, conforme pedido, e agora só lhe restava esperar: ou ele viria ou não.
Mas Harry ainda não aprontara as malas. Parecia-lhe bom demais para ser verdade que fossem tirá-lo da casa dos Dursley após quinze dias em companhia da família. Não conseguia se livrar da sensação de que alguma coisa ia desandar — a resposta à carta de Dumbledore poderia ter se extraviado; o bruxo poderia ser impedido de vir buscá-lo; a carta poderia não ser de Dumbledore e não passar de um truque, uma piada ou uma arapuca. Harry não teve coragem de aprontar as malas e depois ficar na mão e precisar desfazer tudo. A única concessão que fizera à possibilidade de viajar fora fechar Edwiges na gaiola.
O ponteiro menor do relógio chegou ao número doze e, neste exato momento, o lampião da rua apagou.
Harry acordou como se a repentina escuridão fosse um despertador. Endireitou, apressado, os óculos e, descolando a bochecha da vidraça para, em seu lugar, encostar o nariz, apertou os olhos para enxergar a calçada. Um vulto alto com uma longa capa esvoaçante estava entrando pelo jardim.
Harry levantou-se de um pulo como se tivesse levado um choque elétrico, derrubou a cadeira e começou a pegar todas as coisas ao seu alcance e jogá-las no malão. Na hora em que arremessava as vestes, dois livros de feitiços e uma embalagem de salgadinhos para o outro lado do quarto, a campainha tocou.
Lá embaixo, na sala de estar, seu tio Válter exclamou com impaciência:
— Quem será que está tocando a uma hora dessas?
Harry congelou, com um telescópio de latão em uma das mãos e um par de tênis na outra.
Esquecera-se completamente de avisar os Dursley de que Dumbledore talvez viesse. Sentindo ao mesmo tempo pânico e vontade de rir, saltou por cima do malão e escancarou a porta do quarto, em tempo de ouvir uma voz grave cumprimentar:
— Boa-noite. O senhor deve ser o Sr. Dursley. Será que Harry não o preveniu que eu viria buscá-lo?
Harry desceu a escada de dois em dois degraus e parou abruptamente a alguns passos do hall, pois a longa experiência o ensinara a ficar longe do alcance do tio sempre que possível. Parado à porta, estava um homem alto e magro, com barbas e cabelos prateados até a cintura. Usava oclinhos de meia-lua encarrapitados no nariz torto, uma longa capa de viagem e um chapéu cônico. Vestido com um roupão cor de vinho, Válter Dursley, cujo bigode era preto mas tão farto quanto o de Dumbledore, encarava o visitante como se não pudesse acreditar nos seus olhinhos miúdos.
— A julgar pelo seu ar aturdido e descrente, Harry não o avisou da minha vinda — disse Dumbledore em tom amável. — Mas vamos presumir que o senhor tenha me convidado, cordialmente, a entrar. Não é sensato demorar demais à soleira das portas nestes tempos perturbados.
O bruxo cruzou o portal com elegância e fechou a porta ao passar.
— Faz muito tempo desde a minha última visita — falou Dumbledore, olhando por cima dos óculos para o tio Válter. — Devo dizer que os seus agapantos estão bem floridos.
Válter continuou calado. Harry não duvidou que o tio logo recuperasse a fala — a veia que latejava em sua têmpora estava quase explodindo. Mas alguma coisa em Dumbledore parecia ter-lhe roubado temporariamente o fôlego. Talvez fosse a sua inegável aparência bruxa ou o fato de que mesmo o tio Válter podia perceber que ali estava um homem muito difícil de intimidar.
— Ah, boa-noite, Harry — cumprimentou Dumbledore, erguendo a cabeça para olhá-lo através dos óculos com ar de satisfação. — Ótimo, ótimo.
Tais palavras pareceram despertar o tio Válter. Em sua opinião, era óbvio que qualquer homem que pudesse olhar para Harry e dizer “ótimo” era alguém com quem ele jamais concordaria.
— Não quero ser grosseiro... — começou ele, em um tom que ameaçava se tornar grosseiro a cada sílaba.
— ...contudo, a grosseria acidental ocorre com alarmante freqüência — Dumbledore terminou a frase sério. — É melhor não dizer nada, meu caro. Ah, e esta deve ser Petúnia.
A porta da cozinha se abrira, revelando a tia de Harry, de luvas de borracha e um robe por cima da camisola, visivelmente interrompendo sua costumeira limpeza das superfícies da cozinha antes de ir se deitar. Seu rosto cavalar expressava apenas choque.
— Alvo Dumbledore — informou o bruxo, já que o tio Válter não o apresentara. — Temos nos correspondido, é claro. — Harry achou que era um modo esquisito do diretor lembrar à tia Petúnia que certa vez lhe enviara uma carta explosiva, mas ela não protestou. — E esse deve ser o seu filho Duda, não?
Naquele instante, Duda espiara à porta da sala de estar. Sua cabeça grande e loura, emergindo da gola listrada do pijama, parecia estranhamente separada do corpo, a boca aberta de espanto e medo. Dumbledore esperou um momento, aparentemente para ver se os Dursley iam dizer alguma coisa, mas, como o silêncio se prolongasse, ele sorriu.
— Posso presumir que os senhores tenham me convidado a sentar em sua sala de estar?
Duda afastou-se depressa do caminho quando Dumbledore passou. Harry, ainda segurando o telescópio e os tênis, saltou os últimos degraus e acompanhou Dumbledore, que se acomodou na poltrona mais próxima da lareira e se deteve a reconhecer o ambiente com uma expressão de educado interesse. Parecia extraordinariamente deslocado.
— Não vamos embora, professor? — perguntou Harry ansioso.
— Certamente, mas primeiro há umas questões que precisamos discutir. E preferia não fazer isto ao ar livre. Por isso, vamos abusar da hospitalidade do seus tios por mais uns minutinhos.
— E como vão!
Válter Dursley entrara na sala, Petúnia ao seu lado e Duda, mal-humorado, atrás deles.
— É — disse Dumbledore com simplicidade. — Abusaremos.
E sacou a varinha com tanta rapidez que Harry mal chegou a vê-la; a um gesto displicente, o sofá arremessou-se para a frente, atingiu os joelhos dos Dursley e os fez perder o equilíbrio e desmontar nele. A um segundo gesto com a varinha, o sofá voltou rapidamente à posição inicial.
— E é melhor fazermos isso com conforto — disse o bruxo cordialmente.
Quando Dumbledore guardou a varinha no bolso, Harry notou que sua mão estava escura e enrugada; a pele parecia ter sido destruída por uma queimadura.
— Professor... que aconteceu com sua...?
— Mais tarde, Harry. Sente-se, por favor.
O garoto ocupou a poltrona que sobrara, fazendo questão de não olhar para os Dursley, todos mudos de espanto.
— Presumi que fossem me oferecer uma bebida — disse Dumbledore ao tio Válter —, mas, pelo visto, tanto otimismo seria tolice.
Um terceiro gesto com a varinha fez aparecer no ar uma garrafa empoeirada e cinco copos. A garrafa se inclinou e serviu uma generosa dose de um líquido cor de mel em cada copo, que, então, flutuou até cada uma das pessoas na sala.
— É o melhor hidromel envelhecido em barris de carvalho por Madame Rosmerta — explicou Dumbledore, fazendo um brinde a Harry, que apanhou o copo e bebeu. Nunca provara nada parecido antes, mas gostou imensamente. Os Dursley, depois de trocarem olhares rápidos e apavorados, tentaram fingir que não viam seus copos, o que era difícil porque eles davam pancadinhas em suas cabeças. Harry não conseguiu afastar a suspeita de que Dumbledore estava se divertindo.
— Bom, Harry — disse o bruxo dirigindo-se a ele —, surgiu uma dificuldade que espero que você possa resolver para nós. Por nós, eu me refiro à Ordem da Fênix. Antes de mais nada, porém, preciso lhe dizer que encontraram o testamento de Sirius há uma semana, e ele deixou todos os seus bens para você.
No sofá, tio Válter se virara, mas Harry não olhou para ele nem conseguiu pensar em nada para dizer, exceto:
— Certo.
— No geral, é um testamento bem simples. Você acrescenta uma boa quantidade de ouro à sua conta no Gringotes e herda todos os bens pessoais de Sirius. A parte ligeiramente problemática do documento...
— O padrinho dele morreu? — perguntou tio Válter, em voz alta, lá do sofá. Dumbledore e Harry se viraram para olhá-lo. O copo de hidromel agora batia insistentemente em sua cabeça; ele tentava afastá-lo. — Morreu? O padrinho dele?
— Morreu — confirmou Dumbledore, sem perguntar a Harry por que não contara aos tios.
— Nosso problema — continuou falando com Harry, como se não tivesse havido interrupção — é que Sirius também deixou para você a casa número doze do Largo Grimmauld.
— Deixou uma casa para ele? — perguntou tio Válter, ganancioso, apertando os olhos miúdos, mas ninguém lhe respondeu.
— Podem continuar a usar a casa como quartel-general — disse Harry. — Não me importo. Podem ficar com ela. Não a quero. — Se dependesse dele, não queria nunca mais pisar na casa do largo Grimmauld. Achava que a lembrança de Sirius, vagando solitário pelos aposentos escuros e mofados, prisioneiro de um lugar que tinha tentado desesperadamente abandonar, o atormentaria para sempre.
— É um gesto generoso. Mas desocupamos o imóvel temporariamente.
— Por quê?
— Bem — respondeu Dumbledore, não dando atenção aos resmungos do tio Válter, que agora levava na cabeça batidas dolorosas do insistente copo de hidromel —, segundo a tradição da família Black, a casa passa ao descendente masculino mais próximo, em linha direta que tenha o nome Black. Sirius foi o último da linhagem, porque seu irmão mais novo, Régulo, faleceu antes, e nenhum dos dois teve filhos. Embora o testamento deixe perfeitamente claro que Sirius desejava que a casa fosse sua, é possível que tenham lançado nela algum encantamento ou feitiço para garantir que não pertença a alguém de sangue impuro.
A imagem nítida do quadro da mãe de Sirius berrando e cuspindo, no corredor da casa número doze no Largo Grimmauld, passou pela cabeça de Harry.
— Aposto que lançaram.
— Sem dúvida — disse Dumbledore. — E, se tal encantamento existir, é muito provável que a propriedade da casa passe ao parente vivo mais velho de Sirius, ou seja, sua prima Belatriz Lestrange.
Sem perceber o que fazia, Harry levantou-se de um pulo; o telescópio e os tênis em seu colo rolaram pelo chão. Belatriz Lestrange, a assassina de Sirius, herdar a casa dele?
— Não — protestou ele.
— Bem, é óbvio que também preferimos que ela não herde — respondeu Dumbledore calmamente. — A situação é bem complicada. Por exemplo, não sabemos se os encantamentos que nós mesmos lançamos sobre a casa, para impossibilitar sua localização, persistirão, agora que deixou de pertencer a Sirius. Belatriz pode aparecer à porta a qualquer momento. É claro que fomos obrigados a nos mudar até termos esclarecido a nossa posição.
— Mas como é que vamos descobrir se tenho direito a casa?
— Felizmente há um teste bem simples. — Dumbledore depositou o copo em cima de uma mesinha ao lado de sua poltrona, mas, antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, o tio Válter berrou:
— Quer tirar essas porcarias de cima da gente?
Harry se virou; os três Dursley estavam encolhidos com os braços para o alto enquanto os copos batiam em suas cabeças, fazendo voar hidromel para todo lado.
— Ah, sinto muito — disse Dumbledore, atencioso, e tornou a erguer sua varinha. Os três copos desapareceram. — Mas, sabem, teria sido mais educado aceitarem a bebida.
Pelo jeito, tio Válter estava explodindo de vontade de dar várias respostas malcriadas, mas apenas voltou a se afundar nas almofadas com tia Petúnia e Duda, sem dizer nada, nem tirar seus olhinhos de porco da varinha de Dumbledore.
— Entende — continuou Dumbledore, voltando sua atenção para Harry, como se o tio Válter não tivesse se manifestado —, se você tiver de fato herdado a casa, também terá herdado... Ele acenou com a varinha pela quinta vez. Ouviu-se um forte estalo e apareceu, agachado no tapete peludo dos Dursley, um elfo doméstico, com um nariz focinhudo, grandes orelhas de morcego e enormes olhos avermelhados, vestido de trapos encardidos. Tia Petúnia soltou um urro de arrepiar os cabelos: não havia lembrança de nada imundo assim ter algum dia entrado em sua casa; Duda tirou do chão os enormes pés rosados e descalços e levantou-os quase acima da cabeça, como se imaginasse que a criatura pudesse subir pelas calças do seu pijama, e tio Válter berrou:
— Que diabo é isso?
— ...o Monstro — apresentou Dumbledore.
— Monstro não quer, Monstro não quer. Monstro não quer — grasnou o elfo doméstico, berrando quase tão alto quanto o tio Válter, batendo no chão os pés nodosos e puxando as orelhas. — Monstro é da senhorita Belatriz, ah, sim, Monstro é dos Black. Monstro quer sua nova dona, Monstro não quer o pirralho Potter, Monstro não quer, não quer, não quer...
— Como você está vendo, Harry — disse Dumbledore alteando a voz acima dos grasnidos ininterruptos do Monstro de “não quer, não quer, não quer” —, Monstro está demonstrando uma certa relutância em passar às suas mãos.
— Eu não me importo — repetiu Harry, olhando enojado para o elfo, que se contorcia e batia os pés. — Eu não o quero.
— Não quer, não quer, não quer...
— Você prefere que passe às mãos de Belatriz Lestrange? Mesmo lembrando que ele morou todo o último ano no quartel-general da Ordem da Fênix?
— Não quer, não quer, não quer...
Harry encarou Dumbledore. Sabia que não poderia deixar o Monstro ir morar com Belatriz Lestrange, mas a idéia de ser dono dele, de assumir responsabilidade pela criatura que traíra Sirius, era repugnante.
— Dê-lhe uma ordem — disse Dumbledore. — Se ele for seu, terá de obedecer. Se não, teremos de pensar em outros meios de mantê-lo longe de sua legítima dona.
— Não quer, não quer, não quer, NÃO QUER!
Monstro agora urrava. Harry não conseguiu pensar no que dizer, exceto:
— Monstro, cala a boca!
Por um instante pareceu que o Monstro fosse engasgar. Levou as mãos à garganta, a boca ainda mexendo furiosamente, os olhos saltando das órbitas. Passados alguns segundos de engolidas em seco, ele se atirou de cara no tapete (tia Petúnia gemeu) e bateu no chão com as mãos e os pés, entregando-se a um violento, mas silencioso, acesso de raiva.
— Bem, isto simplifica a questão — disse Dumbledore animado. — Parece que Sirius sabia o que estava fazendo. Você é o legítimo proprietário da casa número doze no Largo Grimmauld e de Monstro.
— Será que tenho de... de ficar com ele? — perguntou Harry, horrorizado, enquanto Monstro continuava a se debater a seus pés.
— Não, se não quiser — disse Dumbledore. — Se aceita uma sugestão, você poderia mandá-lo trabalhar na cozinha de Hogwarts. Desta maneira, os outros elfos domésticos poderiam vigiá-lo.
— É — exclamou Harry aliviado —, é o que vou fazer. Ãa... Monstro... quero que vá para as cozinhas de Hogwarts trabalhar com os outros elfos.
Monstro, que agora estava com as costas achatadas contra o chão, e os pés e as pernas no ar, lançou a Harry, de baixo para cima, um olhar do mais profundo desprezo e, com outro forte estalo, desapareceu.
— Bom — disse Dumbledore. — Temos também o problema do hipogrifo. Hagrid tem cuidado dele desde que Sirius morreu, mas o Bicuço agora é seu, por isso, se preferir tomar outras providências...
— Não — respondeu Harry imediatamente —, ele pode continuar com Hagrid. Bicuço gostaria mais assim.
— Hagrid vai adorar — disse Dumbledore sorrindo. — Ficou contente de rever Bicuço. Por falar nisso, para garantir a segurança dele, decidimos, por ora, rebatizá-lo de Asafugaz, embora eu duvide que o Ministério possa concluir que é o mesmo hipogrifo condenado à morte. Agora, Harry, suas malas estão prontas?
— Ããã...
— Duvidou que eu apareceria? — insinuou Dumbledore astutamente.
— Num minuto... eh... eu termino — apressou-se Harry a dizer, catando o telescópio e os tênis que tinham caído.
Ele gastou pouco mais de dez minutos para encontrar tudo de que precisava; por fim, conseguiu tirar a Capa da Invisibilidade de baixo da cama, vedou o frasco de Tinta Muda-Cor e forçou a tampa do malão a fechar sobre seu caldeirão. Depois, arrastando o malão com uma das mãos e segurando a gaiola de Edwiges com a outra, desceu.
Harry ficou desapontado ao descobrir que Dumbledore não o esperava no hall, o que significava que teria de voltar à sala de estar.
Ninguém conversava. Dumbledore cantarolava de boca fechada, aparentemente muito à vontade, mas a atmosfera estava densa e gelada, e Harry não se atreveu a olhar para os Dursley quando anunciou:
— Professor... estou pronto.
— Bom — disse Dumbledore. — Uma última coisa, então. — E se virou para falar com os Dursley. — Como os senhores sem dúvida sabem, dentro de um ano Harry atinge a maioridade...
— Não — interrompeu-o a tia Petúnia, falando pela primeira vez desde a chegada de Dumbledore.
— Perdão? — disse o bruxo, educadamente.
— Não. Ele é um mês mais novo que o Duda, e meu filho só vai fazer dezoito anos daqui a dois anos.
— Ah — exclamou Dumbledore cordialmente —, mas, no mundo dos bruxos, atingimos a maioridade aos dezessete.
Tio Válter resmungou “que absurdo”, mas Dumbledore não lhe deu atenção.
— Então, como os senhores sabem, o bruxo chamado Lord Voldemort voltou ao país. Atualmente a nossa comunidade está em guerra declarada. Harry, a quem Lord Voldemort já tentou matar em várias ocasiões, está passando por um perigo muito maior do que no dia em que o deixei à sua porta, há quinze anos, com uma carta explicando que seus pais tinham sido assassinados e manifestando a esperança de que os senhores cuidassem dele como se fosse um filho.
Dumbledore fez uma pausa, e, embora sua voz continuasse leve e calma, e não deixasse transparecer sua raiva, Harry sentiu que emanava uma certa frieza. Notou também que os Dursley se aconchegaram uns aos outros quase imperceptivelmente.
— Os senhores não fizeram o que pedi. Nunca trataram Harry como um filho. Nas suas mãos, ele só conheceu o descaso e muitas vezes a crueldade. O máximo que se pode dizer a seu favor é que ele escapou do enorme dano que os senhores causaram a esse pobre menino sentado entre os dois.
Tio Válter e tia Petúnia se viraram instintivamente, como se esperassem ver mais alguém além de Duda espremido entre eles.
— Nós... tratamos mal o Dudoca? Que conversa...? — começou tio Válter furioso, mas Dumbledore ergueu um dedo mandando-o silenciar, e o silêncio sobreveio como se o bruxo o tivesse emudecido.
— A mágica que invoquei há quinze anos significa que Harry contará com uma forte proteção enquanto puder considerar esta casa dele. Por mais infeliz que tenha sido aqui, por mais mal recebido, por mais destratado, os senhores lhe concederam pelo menos abrigo, ainda que de má vontade. A mágica cessará no momento em que Harry fizer dezessete anos; em outras palavras, no momento em que se tornar homem. Então só peço uma coisa: que os senhores deixem Harry voltar mais uma vez a esta casa, antes do seu aniversário de dezessete anos, o que garantirá que a proteção se manterá em vigor até aquela data.
Nenhum dos Dursley disse coisa alguma. Duda tinha a testa ligeiramente enrugada, como se ainda tentasse entender quando fora maltratado. Tio Válter parecia ter alguma coisa entalada na garganta. Tia Petúnia, no entanto, parecia estranhamente corada.
— Bem, Harry... está na hora de irmos andando — disse, por fim, Dumbledore, levantando-se e acertando a longa capa preta. — Até a próxima — disse aos Dursley, que, pelo jeito, pareciam desejar que a próxima não chegasse nunca. E, cumprimentando-os com um aceno do chapéu, saiu teatralmente da sala.
— Tchau — despediu-se Harry, apressado, e acompanhou Dumbledore, que parou junto ao malão com a gaiola em cima.
— Não queremos nos sobrecarregar com isso agora — disse, puxando mais uma vez a varinha. — Vou despachar esta bagagem para A Toca. Mas gostaria que você levasse sua Capa da Invisibilidade... caso precise.
A muito custo, Harry tirou a capa do malão, tentando esconder do diretor a bagunça que havia lá dentro. Depois que a enfiou de qualquer jeito em um bolso interno do blusão, Dumbledore acenou com a varinha, e o malão, a gaiola e Edwiges desapareceram. Fez um novo aceno, e a porta da casa se abriu para a escuridão fresca e enevoada.
— E agora, Harry, vamos sair para a noite em busca dessa sedutora volúvel, a aventura.

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