Posted by : Unknown junho 04, 2014

Capítulo 25


A pergunta de Harry foi respondida logo na manhã seguinte. Quando chegou o Profeta Diário de Hermione, ela o abriu, deu uma espiada na primeira página e soltou um gritinho que fez com que todos ao seu redor a olhassem.
— Quê? — perguntaram Harry e Rony juntos.
Em resposta, ela abriu o jornal na mesa diante dos garotos e apontou para dez fotografias em preto e branco que ocupavam toda a primeira página, nove caras de bruxos e, a décima, de uma bruxa. Alguns deles zombavam em silêncio; outros tamborilavam os dedos nas molduras dos retratos, com insolência. Cada foto trazia uma legenda com um nome e o crime pelo qual a pessoa fora mandada para Azkaban.
Antônio Dolohov, informava a legenda sob o bruxo com o rosto pálido e torto que sorria troçando para Harry, condenado pelo brutal homicídio de Gideão e Fábio Prewett.
Augusto Rookwood, lia-se sob a foto do homem com o rosto marcado por bexigas e os cabelos oleosos, que se apoiava na borda da foto com ar de tédio, condenado por passar a Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado segredos do Ministério da Magia.
Mas o olhar de Harry foi atraído para a foto da bruxa. Seu rosto se destacara no momento em que ele vira a página. Tinha longos cabelos escuros que pareciam malcuidados e desgrenhados, embora ele os tivesse visto sedosos, espessos e brilhantes. Ela o encarou sob as pesadas pálpebras, um sorriso arrogante e desdenhoso brincando em seus lábios. Como Sirius, ela conservava feições atraentes, mas alguma coisa — talvez Azkaban — levara a maior parte da sua beleza.
Belatriz Lestrange, condenada pela tortura e incapatitação permanente de Franco e Alice Longbottom.
Hermione cutucou Harry e apontou para a manchete no alto das fotos, que ele, concentrado em Belatriz, ainda não lera.

FUGA EM MASSA DE AZKABAN
MINISTÉRIO TEME QUE BLACK SEJA O "PONTO DE REUNIÃO" PARA ANTIGOS COMENSAIS DA MORTE

— Black? — exclamou Harry em voz alta. — Não...?
— Psiu! — sussurrou Hermione desesperada. — Não fale tão alto... só leia!

O Ministério da Magia anunciou à noite passada que houve uma fuga em massa em Azkaban.
Em entrevista aos repórteres em seu gabinete, Cornélio Fudge, ministro da Magia, confirmou que dez prisioneiros de segurança máxima escaparam no início da noite de ontem, e que ele já informou ao primeiro-ministro dos trouxas a natureza perigosa dos fugitivos.
"Nós nos encontramos, infelizmente, na mesma posição de dois anos e meio atrás quando o assassino Sirius Black fugiu", comentou Fudge. "E achamos que as duas fugas estão relacionadas. Uma fuga nessa escala aponta para ajuda externa, e devemos nos lembrar que Black, a primeira pessoa a escapar de Azkaban, estaria em posição ideal para ajudar outros a seguirem seus passos. Cremos que muito provavelmente esses indivíduos, entre os quais se inclui a prima de Black, Belatriz Lestrange, se agruparam em torno de Black como seu líder. Estamos, no entanto, envidando todos os esforços para capturar os criminosos, e pedimos à comunidade bruxa que se mantenha alerta e cautelosa. Em nenhuma circunstância devem se aproximar desses indivíduos."

— Está tudo aí, Harry — disse Rony, assombrado. — É por isso que ele estava tão feliz ontem à noite.
— Não acredito — vociferou Harry. — Fudge está culpando Sirius pela fuga?
— Que outra opção ele tem? — disse Hermione amargurada. — Não vai poder dizer: "Desculpe, pessoal, Dumbledore me avisou que isto poderia acontecer, os guardas de Azkaban se uniram a Voldemort", pare de choramingar, Rony, "e agora seus piores seguidores também fugiram". Quero dizer, ele passou uns seis meses anunciando para todo o mundo que você e Dumbledore eram mentirosos, não?
Hermione abriu com violência o jornal e começou a ler a notícia nas páginas internas enquanto Harry corria os olhos pelo Salão Principal. Não conseguia entender por que seus colegas não estavam apavorados nem sequer discutiam a terrível notícia na primeira página, mas poucos tinham assinatura diária do jornal como Hermione.
Estavam todos conversando sobre os deveres e o quadribol — e quem sabe que outras tolices —, quando fora dos muros da escola mais dez Comensais da Morte haviam engrossado as fileiras de Voldemort.
Ele ergueu os olhos para a mesa dos professores. Ali, a situação era diferente: Dumbledore e a Profª McGonagall conversavam absortos, ambos parecendo extremamente sérios. A Profª Sprout apoiara o Profeta Diário em um vidro de ketchup e lia a primeira página com tal concentração que nem reparava nos pingos de gema de ovo que caíam em seu colo da colher que segurava no ar.
Entrementes, na extremidade da mesa, a Profª Umbridge comia com entusiasmo sua tigela de mingau de aveia. Uma vez na vida seus empapuçados olhos de sapo não estavam varrendo o Salão Principal à procura de alunos malcomportados. Engolia o mingau com ar aborrecido, e de vez em quando lançava um olhar malévolo para o lado da mesa em que Dumbledore e McGonagall conversavam tão concentrados.
— Nossa! — exclamou Hermione com ar de dúvida, continuando a ler o jornal.
— Que foi agora? — perguntou Harry depressa; estava assustado...
— É... horrível — disse, abalada. Ela dobrou a página dez do jornal e passou-o a Harry e Rony.

MORTE TRÁGICA DE FUNCIONÁRIO DO MINISTÉRIO DA MAGIA
O Hospital St. Mungus prometeu um inquérito rigoroso sobre a morte do funcionário do Ministério da Magia, Broderico Bode, 49 anos, encontrado em sua cama, estrangulado por uma planta envasada. Os Curandeiros chamados não conseguiram reanimar o Sr. Bode, que fora ferido em um acidente de trabalho algumas semanas antes.
A Curandeira Miriam Strout, que se encontrava de serviço na enfermaria do Sr. Bode na hora do incidente, foi suspensa de suas funções, sem perda de remuneração, e não foi encontrada ontem para comentar a notícia, mas um porta-voz do hospital declarou:
"O Hospital St. Mungus lamenta profundamente a morte do Sr. Bode, que estava em plena recuperação antes deste trágico acidente. Temos diretrizes rigorosas para as decorações permitidas em nossas enfermarias, mas, aparentemente, a Curandeira Strout, muito atarefada durante o período natalino, não percebeu o perigo da planta à cabeceira do Sr. Bode. A medida que sua fala e mobilidade melhoravam, a Curandeira Strout encorajou o Sr. Bode a cuidar sozinho da planta, sem saber que não era uma inocente diafanina, mas uma muda de visgo-do-diabo que, ao ser tocada pelo convalescente Sr. Bode, estrangulou-o instantaneamente."
O St. Mungus ainda não soube explicar a presença da planta, e pede a quem tiver alguma informação para se apresentar.

— Bode – repetiu Rony. — Bode. Me lembra alguma coisa...
— Nós o vimos — cochichou Hermione. –— No St. Mungus, lembra? Estava na cama defronte a Lockhart, deitado, olhando para o teto. E vimos o visgo-do-diabo chegar. Ela, a Curandeira, disse que era presente de Natal!
Harry foi se lembrando da história. Uma sensação de horror começou a subir como bile à sua boca.
— Como foi que não reconhecemos o visgo? Nós já o vimos antes... poderíamos ter impedido isso de acontecer.
— Quem espera que um visgo-do-diabo apareça em um hospital disfarçado de plantinha ornamental? — perguntou Rony asperamente. — Não é nossa culpa, quem a mandou para o cara é que é culpado! Deve ter sido uma perfeita anta, por que não verificou o que estava comprando?
— Ah, Rony, nem vem! — disse Hermione trêmula. — Não acho que alguém envasasse o visgo sem saber que tentaria matar quem o tocasse! Isso foi homicídio... e um homicídio engenhoso... se a planta foi enviada anonimamente, como é que alguém vai descobrir quem a mandou?
Harry não estava pensando no visgo-do-diabo. Estava se lembrando de um homem de rosto macilento que entrara no nível do Átrio, quando tomaram o elevador para o nível nove do Ministério no dia de sua audiência.
— Eu conheci Bode — disse lentamente. — Eu o vi no Ministério quando fui com o seu pai.
O queixo de Rony caiu.
— Eu ouvi papai falar dele em casa! Era um Inominável: trabalhava no Departamento de Mistérios!
Os garotos se entreolharam por um momento, então Hermione tornou a puxar o jornal para ela, estudou por um momento as fotos dos dez Comensais da Morte fugitivos na primeira página e então ficou em pé de repente.
— Aonde é que você vai? — perguntou Rony surpreso.
— Enviar uma carta — disse Hermione, atirando a mochila por cima do ombro. — Bom, não sei se... mas vale a pena tentar... eu sou a única que pode.
— Detesto quando ela faz isso — resmungou Rony ao se levantar com Harry para saírem sem pressa do Salão Principal. — Será que ia morrer se nos dissesse o que pretende fazer ao menos uma vez? Só levaria mais dez segundos... eh, Hagrid!
Hagrid estava parado à porta do Salão Principal, esperando uma turma de alunos da Corvinal passar. Continuava tão machucado quanto no dia em que voltara de sua missão aos gigantes, e havia um novo corte na ponta do seu nariz.
— Tudo bem, vocês dois? — disse, fazendo um esforço para sorrir, mas só conseguindo produzir uma careta de dor.
— Você está o.k., Hagrid? — perguntou Harry, acompanhando-o nas esteiras dos alunos da Corvinal.
— Ótimo, ótimo — respondeu Hagrid, assumindo sem sucesso um tom displicente; acenou e por pouco não bateu na assustada Profª Vector que ia passando. — Ocupado, você sabe, o de sempre, aulas para preparar, umas salamandras tiveram podridão nas escamas, e estou em observação — murmurou.
— Está em observação? — repetiu Rony em voz alta, de modo que vários alunos próximos olharam curiosos. — Desculpe... quero dizer... você está em observação? — sussurrou.
— Eu não esperava outra coisa, para falar a verdade. Vocês talvez não tenham percebido, mas a inspeção não correu muito bem, entendem... em todo o caso
— ele deu um profundo suspiro. — Melhor eu ir esfregar mais um pouco de pimenta nas salamandras ou os rabos delas vão cair. Até mais, Harry... Rony...
Ele saiu pesadamente pela porta da frente e desceu a escada em direção aos terrenos molhados. Harry ficou observando-o se afastar, imaginando quantas más notícias ele poderia suportar.
O fato de Hagrid estar em observação tornou-se conhecido em toda a escola nos dias seguintes, mas, para indignação de Harry, quase ninguém pareceu se incomodar; na verdade, algumas pessoas, entre as quais se destacava Draco Malfoy, pareciam decididamente felizes. Quanto à morte estranha de um obscuro funcionário do Ministério da Magia no St. Mungus, Harry, Rony e Hermione pareciam ser as únicas pessoas que sabiam ou se importavam.
Havia apenas um tópico de conversa nos corredores agora: os dez Comensais da Morte fugitivos, cuja história finalmente se filtrara pela escola através dos poucos que liam jornais. Voavam boatos de que alguns dos condenados tinham sido vistos em Hogsmeade, que deviam estar escondidos na Casa dos Gritos e que iam invadir Hogwarts, tal como haviam dito sobre Sirius um dia.
Os que pertenciam a famílias bruxas tinham sido criados ouvindo os nomes dos Comensais da Morte com quase tanto medo quanto o de Voldemort; os crimes que haviam cometido durante o reinado de terror do Lorde das Trevas eram lendários. Havia parentes das vítimas entre os alunos de Hogwarts, que agora se viam transformados em involuntários objetos de uma fama indireta e sinistra quando passavam pelos corredores: Susana Bones, cujos tio, tia e primos tinham morrido pela mão de um dos dez, comentou, infeliz, durante uma aula de Herbologia que agora tinha uma boa idéia de como Harry se sentia.
— E não sei como você suporta: é horrível — disse ela sem rodeios, despejando estrume demais em sua bandeja de mudinhas de bocas-de-guincho, fazendo-as se torcerem e estrilar incomodadas.
É verdade que Harry ultimamente voltara a ser comentado aos sussurros e apontado nos corredores, contudo achava ter percebido uma ligeira diferença no tom dos colegas. Agora pareciam curiosos em vez de hostis, e uma ou duas vezes teve certeza de ouvir fragmentos de conversas que sugeriam que as pessoas não estavam satisfeitas com a versão do Profeta de como e por que dez Comensais da Morte tinham conseguido escapar da fortaleza de Azkaban. Em sua confusão e medo, os que duvidavam estavam se voltando para a única explicação que conheciam: a que Harry e Dumbledore vinham apresentando desde o ano anterior.
Não era apenas a atitude dos estudantes que havia mudado. Agora era bem comum deparar com dois ou três professores conversando em sussurros urgentes nos corredores, interrompendo a conversa no momento em que viam alunos se aproximarem.
— Obviamente eles não podem mais conversar na sala de professores — comentou Hermione em voz baixa, quando ela, Harry e Rony passaram um dia por McGonagall, Flitwick e Sprout agrupados à porta da sala de Feitiços. — Não com a Umbridge por lá.
— Você acha que eles sabem de alguma novidade? — perguntou Rony, espiando por cima do ombro para os três professores.
— Se souberem, não vamos saber, não é? — falou Harry irritado. — Não depois do decreto... em que número estamos agora? — Pois havia aparecido um novo aviso nos quadros das Casas na manhã seguinte à fuga de Azkaban:

POR ORDEM DA ALTA INQUISIDORA DE HOGWARTS
Doravante, os professores estão proibidos de passar informações aos estudantes que não estejam estritamente relacionadas com as disciplinas que são pagos para ensinar.
A ordem acima está de acordo com o Decreto Educacional Número Vinte e Seis
Assinado: Dolores Joana Umbridge, Alta Inquisidora.

Este último decreto fora tema de um grande número de piadas entre os alunos. Lino Jordan havia lembrado a Umbridge que, pelos termos da nova lei, ela não podia ralhar com Fred e Jorge por brincarem com Snap Explosivo no fundo da sala.
— Snap Explosivo não tem relação alguma com Defesa Contra as Artes das Trevas, professora! Não é uma informação pertinente à sua disciplina!
Da próxima vez que Harry encontrou Lino, as costas de uma das mãos do amigo sangravam muito. Recomendou-lhe essência de murtisco.
Harry achara que a fuga de Azkaban pudesse deixar Umbridge mais humilde, que ela fosse se envergonhar do desastre que ocorrera bem debaixo do nariz do seu querido Fudge. Parecia, porém, que a fuga apenas intensificara o seu desejo furioso de submeter cada aspecto da vida de Hogwarts ao seu controle pessoal. Parecia decidida a obter pelo menos uma demissão sem muita demora, a única dúvida era quem iria primeiro, se a Profª Trelawney ou Hagrid.
Cada aula de Adivinhação e Trato das Criaturas Mágicas era dada em presença de Umbridge e sua prancheta. Ela rondava a lareira na sala da torre intensamente perfumada, interrompendo as aulas cada vez mais histéricas da Profª Trelawney com perguntas difíceis sobre ornitomancia e heptomologia, insistindo que ela previsse as respostas dos alunos antes de recebê-las e exigindo que ela demonstrasse sua perícia com a bola de cristal, as folhas de chá e as runas, uma a uma. Harry achou que em breve Trelawney sucumbiria sob tanta pressão. Várias vezes ele passou pela professora nos corredores — o que era em si uma ocorrência incomum, pois em geral ela permanecia na sala da torre — murmurando tresloucada, torcendo as mãos e lançando olhares aterrorizados por cima do ombro, exalando o tempo todo um forte cheiro de xerez ordinário. Se não estivesse tão preocupado com Hagrid, teria sentido pena dela, mas se alguém ia perder o emprego, só poderia haver uma opção para Harry quanto a quem devia continuar.
Infelizmente, Harry não conseguia imaginar Hagrid dando um espetáculo melhor do que Trelawney. E embora ele parecesse estar seguindo o conselho de Hermione e não tivesse mostrado aos alunos mais nada assustador do que um Crupe — um bicho que pouco diferia de um cão terrier exceto pela cauda bifurcada —, desde antes do Natal, Hagrid também parecia ter se acovardado.
Estava curiosamente distraído e nervoso durante as aulas, perdia o fio do que estava ensinando à turma, respondia errado às perguntas, e todo o tempo olhava ansioso para Umbridge. Estava também mais distante de Harry, Rony e Hermione do que jamais estivera, e os proibira expressamente de visitá-lo depois do escurecer.
— Se ela pegar vocês, os nossos pescoços serão cortados — disse sem rodeios. E como os garotos não quisessem fazer nada que pudesse pôr em risco o emprego do amigo, os três se abstiveram de ir até sua cabana à noite. Parecia a Harry que Umbridge estava constantemente privando-o de tudo que fazia sua vida em Hogwarts valer a pena: as visitas à casa de Hagrid, as cartas de Sirius, sua Firebolt e o quadribol. Ele se vingou da única maneira que sabia — redobrando seus esforços na AD.
Harry ficou satisfeito de constatar que todos, até mesmo Zacarias, tinham se sentido incentivados a trabalhar com mais vigor que nunca ao saberem que mais dez Comensais da Morte estavam agora soltos. Mas em ninguém essa melhoria foi mais pronunciada do que em Neville. A notícia da fuga dos atacantes dos seus pais produzira nele uma alteração estranha e até ligeiramente assustadora. Nunca mencionara o seu encontro com Harry, Rony e Hermione na enfermaria fechada do St. Mungus e, seguindo sua deixa, os garotos tinham se calado também. Tampouco comentara a fuga de Belatriz e dos colegas torturadores. De fato, Neville quase não falava mais durante as reuniões da AD, trabalhava sem descanso em cada nova azaração e contraazaração que Harry ensinava, seu rosto gorducho contorcido de concentração, aparentemente insensível aos ferimentos ou acidentes, se esforçando mais do que qualquer outro na sala. Estava melhorando tão depressa que chegava a assustar, e quando Harry lhes ensinou o Feitiço Escudo — um meio de desviar pequenos feitiços e fazê-los ricochetear contra o atacante — somente Hermione dominou o feitiço mais depressa do que Neville.
Harry teria dado o céu para fazer tanto progresso em Oclumência quanto Neville nas reuniões da AD. As sessões de Harry com Snape, que tinham começado bastante mal, não melhoraram. Pelo contrário, Harry sentia que estava piorando a cada aula.
Antes de começar a estudar Oclumência, sua cicatriz formigava ocasionalmente durante a noite, ou então em seguida a um dos estranhos vislumbres dos pensamentos ou emoções de Voldemort que captava de vez em quando. Agora, no entanto, sua cicatriz quase nunca parava de formigar, e muitas vezes ele sentia súbitos assomos de irritação ou alegria, alheios ao que estava lhe acontecendo no momento, que eram sempre acompanhados por uma ferroada particularmente dolorosa na cicatriz. Ele tinha a terrível impressão de que estava se transformando aos poucos em uma espécie de antena alinhada com as mínimas flutuações do humor de Voldemort, e tinha certeza de poder remontar esse aumento de sensibilidade à primeira aula com Snape. Além do mais, agora estava sonhando quase toda a noite que caminhava pelo corredor em direção à entrada do Departamento de Mistérios, sonhos esses que sempre culminavam com ele parado cobiçoso diante da porta preta sem enfeites.
— Talvez seja como uma doença — disse Hermione, parecendo preocupada, quando ele confidenciou seus pensamentos aos dois amigos. — Uma febre ou coisa assim. Tem de piorar antes de melhorar.
— As aulas com Snape estão fazendo piorar — afirmou Harry. — Estou cansado de sentir minha cicatriz doer e farto de andar pelo mesmo corredor toda noite. — Ele esfregou a testa com raiva. — Gostaria que a porta se abrisse, estou cheio de ficar parado olhando para ela...
— Isso não tem graça — disse Hermione com aspereza. — Dumbledore não quer que você tenha sonhos com aquele corredor, ou não teria pedido ao Snape que lhe ensinasse Oclumência. Você vai ter é que se esforçar mais nas suas aulas.
— Estou trabalhando! — respondeu Harry exasperado. — Experimente você uma vez... Snape tentando entrar na sua cabeça... não dá para gargalhar, sabe!
— Talvez... — começou Rony lentamente.
— Talvez o quê? — perguntou Hermione cortando-o.
— Talvez não seja culpa de Harry que ele não consiga fechar a mente — arriscou Rony sombriamente.
— Que é que você está querendo dizer? — perguntou Hermione.
— Bom, talvez Snape não esteja realmente querendo ajudar Harry... Harry e Hermione o encararam. Rony olhou um e outro com uma expressão misteriosa e assustadora.
— Talvez — repetiu baixando mais a voz — ele esteja, na verdade, tentando abrir mais a mente de Harry... facilitar a entrada de Você-Sabe...
— Cala a boca, Rony — disse Hermione zangada. — Quantas vezes você suspeitou de Snape, e quando foi que teve razão? Dumbledore confia nele, ele trabalha para a Ordem, isso deveria ser suficiente.
— Ele costumava ser um Comensal da Morte — teimou Rony. — E nunca vimos prova de que tenha realmente trocado de lado.
— Dumbledore confia nele — repetiu Hermione. — E se não pudermos confiar em Dumbledore, então não poderemos confiar em mais ninguém.
Com tanto com que se preocupar e tanto para fazer — uma assustadora quantidade de deveres que freqüentemente mantinham os quintanistas trabalhando até depois da meia-noite, as reuniões secretas da AD e as aulas regulares de Snape —, o mês de janeiro parecia estar passando com alarmante rapidez. Antes que Harry desse por isso, fevereiro chegara, trazendo um tempo mais úmido e mais quente e a perspectiva da segunda visita do ano a Hogsmeade. Harry tivera muito pouco tempo para gastar em conversas com Cho desde que haviam concordado em visitar a vila juntos, mas de repente viu-se diante da perspectiva de passar o Dia dos Namorados todo em sua companhia. Na manhã do dia 14 de fevereiro vestiu-se com especial cuidado.
Ele e Rony chegaram ao salão para tomar café na hora em que pousavam as corujas trazendo o correio. Edwiges não apareceu — não que Harry a esperasse —, mas Hermione ia puxando uma carta do bico de uma coruja castanha desconhecida, quando eles se sentaram.
— E já não era sem tempo! Se não tivesse vindo hoje... — comentou ela ansiosa, abrindo o envelope de onde tirou um pequeno pergaminho. Seus olhos correram da esquerda para a direita quando leu a mensagem, e uma expressão de sinistra satisfação se espalhou pelo seu rosto.
— Escute, Harry — disse ela erguendo os olhos —, isto é realmente importante. Você acha que pode se encontrar comigo no Três Vassouras por volta do meio-dia?
— Bom... não sei — disse Harry em dúvida. — Cho talvez esteja esperando que eu passe o dia com ela. Não combinamos o que íamos fazer.
— Bom, se precisar leve ela junto — disse Hermione com urgência. — Mas você vai?
— Bom... tudo bem, mas por quê?
— Agora não tenho tempo de lhe contar, tenho de responder logo essa mensagem.
E saiu correndo do Salão Principal, a carta apertada em uma das mãos e um pedaço de torrada na outra.
— Você vai? — Harry perguntou a Rony, que sacudiu a cabeça, com um ar deprimido.
— Nem posso ir a Hogsmeade; Angelina quer que a gente treine o dia todo. Como se isso fosse ajudar; somos o pior time que já vi. Você devia ver o Sloper e o Kirke, são patéticos, piores que eu. — Ele deu um profundo suspiro. — Não sei por que a Angelina não me deixa pedir demissão de uma vez.
— Porque você é bom quando está em forma, só por isso — retrucou Harry irritado.
Tinha muita dificuldade em manifestar simpatia pela situação de Rony, quando ele próprio teria dado quase tudo para participar do próximo jogo contra a Lufa-Lufa. Rony pareceu perceber o tom do amigo, porque não tornou a mencionar a partida durante o café, e houve uma certa frieza na maneira como se despediram pouco depois. Rony saiu para o campo de quadribol e Harry, depois de tentar assentar os cabelos, mirando-se no côncavo da colher, rumou sozinho para o Saguão de Entrada para se encontrar com Cho, sentindo-se muito apreensivo e se perguntando sobre o que iriam conversar.
Ela o aguardava ao lado da porta de carvalho, muito bonita com os cabelos presos atrás em um bonito rabo-de-cavalo. Os pés de Harry lhe pareceram grandes demais para o seu corpo enquanto caminhava ao encontro dela, e de repente tomou consciência dos seus braços e como deviam parecer idiotas balançando dos lados.
— Oi — disse Cho ligeiramente sem ar.
— Oi — disse Harry.
Eles se olharam por um momento e Harry então falou:
— Bom... ah... então vamos?
— Ah... claro...
Os dois entraram na fila de alunos a serem liberados por Filch, seus olhos se encontrando ocasionalmente, dando sorrisos esquivos, mas não conversaram.
Harry sentiu alívio quando chegaram lá fora, achando mais fácil caminharem em silêncio do que ficar parados constrangidos. Era um dia fresco, do tipo em que sopra uma brisa, e, ao passarem pelo estádio de quadribol, Harry viu de relance Rony e Gina sobrevoando as arquibancadas e sentiu uma terrível angústia por não estar lá no alto com eles.
— Você realmente sente falta, não é? — perguntou Cho. Harry virou-se e notou que ela o observava.
— Sinto — suspirou Harry. — Sinto mesmo.
— Lembra da primeira vez que jogamos como adversários no terceiro ano?
— Lembro — disse Harry sorrindo. — Você me bloqueou o tempo todo.
— E Olívio disse para você parar de bancar o cavalheiro e me derrubar da vassoura se precisasse — disse Cho, sorrindo com a lembrança. — Ouvi dizer que ele foi contratado pelo Orgulho de Portree, é verdade?
— Nam, foi pelo União de Puddlemere; eu o vi jogando na Copa do Mundial no ano passado.
— Ah, também vi você lá, lembra? Estávamos no mesmo acampamento. Foi realmente bom, não achou?
O assunto Copa Mundial de Quadribol levou-os pela estrada da escola e além das grades. Harry mal conseguia acreditar como era fácil conversar com ela — de fato, não era mais difícil do que conversar com Rony e Hermione — e estava começando a se sentir confiante e feliz quando uma enorme turma de garotas da Sonserina passou por eles, inclusive Pansy Parkinson.
— Potter e Chang! — guinchou Pansy, que puxou um coro de risinhos de deboche. — Eca, Chang, que mau gosto... pelo menos o Diggory era bonito!
As garotas aceleraram o passo, falando e dando gritinhos críticos, lançando olhares exagerados para Harry e Cho atrás, e deixando ao passar um silêncio constrangido. Harry não conseguia pensar em mais nada para dizer sobre quadribol, e Cho, levemente corada, olhava para os pés.
— Então... aonde é que você quer ir? — perguntou Harry quando entraram em Hogsmeade. A Rua Principal estava cheia de estudantes que caminhavam olhando vitrines e tumultuando as calçadas.
— Ah... não faz diferença — disse Cho encolhendo os ombros. — Hum... vamos dar uma olhada nas vitrines ou outra coisa qualquer?
Eles foram andando em direção à Dervixes & Banguês. Um grande cartaz fora afixado à vitrine, e alguns moradores de Hogsmeade o liam. Eles se afastaram para um lado quando Harry e Cho se aproximaram, e o garoto se viu, mais uma vez, diante das fotos dos dez Comensais da Morte fugitivos. O cartaz, "Por Ordem do Ministério da Magia", oferecia uma recompensa de mil galeões a qualquer bruxo ou bruxa com informações que possibilitassem a recaptura dos condenados retratados.
— É engraçado, não é — comentou Cho em voz baixa, olhando as fotos dos Comensais da Morte —, lembra quando Sirius Black fugiu e havia Dementadores por toda Hogsmeade à procura dele? E agora dez Comensais da Morte estão soltos e não há Dementadores em lugar nenhum...
— É — concordou Harry, desviando os olhos do rosto de Belatriz Lestrange para os dois lados da rua Principal. — É, é bem esquisito.
Ele não lamentava que não houvesse Dementadores por ali, mas agora, pensando bem, a ausência deles era extremamente significativa. Não somente haviam deixado os Comensais da Morte escapar, como nem estavam se dando o trabalho de procurá-los... parecia que agora haviam realmente escapado ao controle do Ministério.
Os dez fugitivos estavam em todas as vitrines pelas quais eles passaram. Na altura da Loja de Penas Escriba, começou a chover; pingos grossos e frios batiam no rosto e na nuca de Harry.
— Ah... quer tomar um café? — perguntou Cho hesitante, quando a chuva começou a cair com mais intensidade.
— Ah, vamos — disse Harry olhando ao redor. — Aonde?
— Ah, tem um lugar realmente gostoso ali adiante; você nunca esteve no Madame Puddifoot? — perguntou ela, animada, conduzindo-o, por uma rua lateral, a uma pequena casa de chá em que Harry nunca reparara antes. Era um lugarzinho apertado e cheio de vapor, onde tudo parecia ter sido decorado com laços e babadinhos. Lembrou a Harry desagradavelmente a sala da Umbridge.
— Bonitinho, não é? — perguntou Cho alegre.
— Ah... é — respondeu Harry sem sinceridade.
— Olhe, ela preparou uma decoração para o Dia dos Namorados! — disse Cho, apontando para os querubins dourados que pairavam sobre as mesinhas circulares, e que a intervalos deixavam cair confetes sobre os fregueses.
— Aaah...
Os dois se sentaram à última mesa que restava, ao lado da janela embaçada. Rogério Davies, capitão do time da Corvinal, estava sentado a menos de meio metro com uma lourinha bonita. De mãos dadas. A cena fez Harry se sentir pouco à vontade, particularmente quando, ao correr os olhos pela loja, viu que só havia casais, todos de mãos dadas. Talvez Cho esperasse que ele segurasse a mão dela.
— Que posso servir a vocês, queridos? — perguntou Madame Puddifoot, uma mulher muito corpulenta com um coque negro e brilhante, espremendo-se entre a mesa deles e a de Rogério com grande dificuldade.
— Dois cafés, por favor — pediu Cho.
No intervalo que levou para os cafés chegarem, Rogério Davies e a namorada começaram a se beijar por cima do açucareiro. Harry gostaria que não o tivessem feito; sentia que Davies estava estabelecendo um padrão com o qual Cho logo iria querer que ele competisse. Sentiu seu rosto começar a esquentar e tentou olhar pela janela, mas estava tão embaçada que não dava para ver a rua lá fora. Para adiar o momento em que teria de olhar para Cho, Harry ergueu os olhos como se estivesse examinando a pintura e recebeu um punhado de confete no rosto, lançado pelos querubins.
Passados mais alguns minutos penosos, Cho mencionou Umbridge. Harry aproveitou a oportunidade com alívio, e passaram alguns momentos divertidos xingando-a, mas, como o assunto já fora examinado tão plenamente durante as reuniões da AD, não durou muito tempo. O silêncio tornou a cair.
Harry estava muito consciente dos barulhos de mastigar e engolir da mesa ao lado, e procurou desesperadamente mais alguma coisa para falar.
— Ah... escute aqui, você quer ir comigo ao Três Vassouras na hora do almoço? Preciso me encontrar com Hermione Granger lá.
Cho ergueu as sobrancelhas.
— Você precisa se encontrar com Hermione Granger? Hoje?
— É. Bom, ela me pediu, então achei que tudo bem. Você quer ir comigo? Ela disse que tudo bem se você fosse.
— Ah... bom... que simpática!
Mas Cho não parecia ter achado nada simpático. Pelo contrário, seu tom foi frio e, de repente, ela assumiu um ar hostil.
Mais alguns minutos se passaram em total silêncio, Harry tomando seu café tão depressa que logo precisaria de outro. Ao lado, Rogério e a namorada pareciam estar colados pelos lábios.
A mão de Cho estava em cima da mesa, ao lado do seu café, e Harry começou a sentir um impulso crescente de segurá-la. Então segure-a, disse a si mesmo, enquanto uma fonte de pânico e excitação jorrava em seu peito, estique a mão e segure-a. Surpreendente, como era muito mais difícil esticar o braço trinta centímetros e tocar a mão dela do que capturar um pomo passando veloz no ar...
Mas, na hora em que estendeu a mão, Cho retirou a dela da mesa. Estava agora observando Rogério beijar a namorada com uma expressão levemente interessada.
— Ele me convidou para sair, sabe — disse em voz baixa. — Há umas duas semanas, o Rogério. Mas eu não aceitei.
Harry, que agarrara o açucareiro para justificar o seu gesto repentino, não conseguiu entender por que Cho estava lhe dizendo aquilo. Se queria estar sentada na mesa ao lado, sendo calorosamente beijada por Rogério Davies, então por que concordara em vir com ele?
Continuou calado. O querubim sobre a mesa atirou mais um punhado de confetes neles; alguns caíram no restinho frio de café na xícara que Harry ia beber.
— Vim aqui com Cedrico no ano passado — disse Cho.
No segundo, ou pouco mais, que Harry levou para entender o que Cho dissera, suas entranhas congelaram. Não conseguia acreditar que quisesse falar de Cedrico neste momento, com casais se beijando ao seu redor e querubins sobrevoando suas cabeças.
A voz de Cho estava bem mais alta quando tornou a falar.
— Há um tempão que estou querendo perguntar a você... o Cedrico... ele f-falou em mim antes de morrer?
Este era o último assunto no mundo que Harry queria discutir, e menos ainda com Cho.
— Bom... não... — disse calmamente. — Não... não houve tempo para ele dizer nada. Hum... então... você... assiste a muitas partidas de quadribol durante as férias? Você torce pelos Tornados, certo?
Sua voz parecia falsamente animada e feliz. Para seu horror, os olhos dela estavam mais uma vez marejados de lágrimas, como depois da última reunião da AD antes do Natal.
— Olhe — disse ele desesperado, curvando-se para ninguém mais ouvir —, não vamos falar de Cedrico agora... vamos falar de outra coisa...
Mas, aparentemente, dissera a coisa errada.
— Pensei — disse Cho com as lágrimas salpicando a mesa. — Pensei que você en-en-entenderia! Preciso falar nisso! Com certeza você também p-precisa falar! Quero dizer, você viu acontecer, não v-viu?
Tudo estava saindo errado como em um pesadelo; a namorada de Rogério até descolara dele para apreciar.
— Bom... eu falei nisso — disse Harry num sussurro — com Rony e Hermione, mas...
— Ah, você fala com Hermione Granger! — disse Cho com voz aguda, o rosto agora brilhante de lágrimas. Outros tantos casais que se beijavam pararam para olhar. — Mas não quer falar comigo! T-talvez fosse melhor se a gente simplesmente p-pagasse a conta e você fosse se encontrar com Hermione G-Granger, como é óbvio que quer fazer!
Harry encarou-a, absolutamente perplexo, enquanto ela apanhava o guardanapo de babadinhos e secava o rosto.
— Cho! — disse ele com a voz fraquinha, desejando que Rogério agarrasse a namorada e recomeçasse a beijá-la para impedi-la de ficar encarando os dois.
— Vá embora, então! — disse ela, agora chorando no guardanapo. — Não sei por que você me convidou para sair, para começar, se combinou se encontrar com outras garotas depois de mim... quantas mais você vai encontrar depois da Hermione?
— Não é nada disso! — disse Harry, e estava tão aliviado de finalmente compreender o motivo do aborrecimento de Cho que riu, o que percebeu, uma fração de segundo depois, tarde demais, que também fora um erro.
Cho se levantou. A sala estava silenciosa e todos os observavam.
— A gente se vê por aí, Harry — disse ela teatralmente, e, soluçando um pouco, precipitou-se para a porta, abriu-a com violência e saiu para a chuva intensa.
— Cho! — Harry chamou, mas a porta já se fechara com um tilintar musical. Fez-se absoluto silêncio na casa de chá. Todos os olhares convergiram para Harry. Ele atirou um galeão na mesa, sacudiu o confete dos cabelos e saiu atrás de Cho.
Chovia pesado e ela não estava à vista. Harry simplesmente não entendia o que acontecera; há meia hora eles estavam se entendendo bem.
— Mulheres! — resmungou com raiva, chapinhando pela rua lavada de chuva com as mãos nos bolsos. — Afinal, para que é que ela queria falar do Cedrico? Por que está sempre querendo puxar um assunto que a faz agir como se fosse uma mangueira humana?
Ele virou à direita e saiu correndo, espadanando água, e alguns minutos depois chegava à porta do Três Vassouras. Sabia que era cedo demais para se encontrar com Hermione, mas achou que provavelmente haveria alguém lá com quem ele pudesse passar o tempo. Sacudiu os cabelos molhados para afastá-los e relanceou o olhar pela sala. Hagrid estava sentado sozinho em um canto, parecendo infeliz.
— Oi, Hagrid! — chamou Harry, espremendo-se entre as mesas cheias e puxando uma cadeira para sentar ao lado do amigo.
Hagrid deu um pulo e olhou para baixo como se mal o reconhecesse. O garoto notou que havia dois novos cortes e vários hematomas em seu rosto.
— Ah, é você, Harry. Você está bom?
— Estou ótimo — mentiu Harry; mas ao lado do maltratado e tristonho Hagrid sentiu que não tinha muito do que se queixar. — Ah... você está o.k.?
— Eu? Ah, estou ótimo, Harry, ótimo.
Ele olhou para o fundo do caneco de estanho, do tamanho de um balde, e suspirou. Harry não sabia o que dizer. Ficaram lado a lado em silêncio por um momento. Então Hagrid disse abruptamente.
— No mesmo barco, você e eu, não estamos, Arry?
— Ah...
— É... já disse isso antes... os dois forasteiros, por assim dizer – comentou Hagrid acenando a cabeça sensatamente. — E os dois órfãos. É... os dois órfãos.
Ele tomou um longo gole.
— Faz diferença ter uma família decente. Meu pai era decente. Seu pai e sua mãe eram decentes. Se tivessem vivido, a vida teria sido diferente, hein?
— É... suponho que sim — concordou Harry com cautela. Hagrid parecia estar num estado de ânimo muito estranho.
— Família — disse sombriamente. — Podem dizer o que quiserem, o sangue é importante...
E enxugou um fio de lágrima que escorria do olho.
— Hagrid — perguntou Harry, incapaz de se conter —, onde é que você está arranjando todos esses ferimentos?
— Eh? — exclamou Hagrid parecendo assustado. — Que ferimentos?
— Todos esses aí! — disse Harry apontando para o seu rosto.
— Ah... são só pancadas e arranhões normais — disse ele desencorajando perguntas —; é um trabalho espinhoso.
Ele esvaziou o caneco, descansou-o na mesa e se levantou.
— A gente se vê, Harry... cuide-se bem.
Ele saiu pesadamente do bar com um ar deprimido, e desapareceu na chuva torrencial. Harry acompanhou-o com o olhar, sentindo-se no fundo do poço. Hagrid estava infeliz e escondia alguma coisa, mas parecia decidido a não aceitar ajuda. Que estaria acontecendo? Antes que Harry pudesse continuar a refletir, ouviu alguém chamando-o.
— Harry! Harry, aqui!
Hermione acenava para ele do outro lado da sala. Ele se levantou e atravessou o pub cheio. Ainda estava a algumas mesas de distância quando percebeu que a amiga não estava sozinha. Estava sentada à mesa com os companheiros de copos mais improváveis que ele poderia imaginar: Luna Lovegood e ninguém menos que Rita Skeeter, ex-jornalista do Profeta Diário e uma das pessoas de quem Hermione menos gostava no mundo.
— Você chegou cedo! — disse Hermione puxando a cadeira para abrir espaço para ele sentar. — Pensei que estivesse com a Cho, só esperava você daqui a uma hora!
— Cho? — exclamou Rita na mesma hora, se virando na cadeira para encarar Harry com avidez. — Uma garota?
Ela agarrou a bolsa de couro de crocodilo e procurou alguma coisa dentro.
— Não é da sua conta se Harry estava com cem garotas — disse Hermione a Rita calmamente. — Então pode guardar isso agora mesmo.
Rita já ia tirando uma pena verde ácido da bolsa. Fazendo cara de quem fora obrigada a engolir Palha-fede, ela tornou a fechar a bolsa com um estalo.
— Que é que vocês estão tramando? — perguntou Harry, sentando-se e olhando de Rita para Luna e desta para Hermione.
— A Srta. Perfeição ia me dizer quando você chegou — disse Rita tomando um grande gole de sua bebida. — Imagino que eu tenha permissão de falar com ele, não? — disparou contra Hermione.
— Imagino que sim — respondeu a outra com frieza.
O desemprego não fazia bem a Rita. Seus cabelos, que antigamente eram penteados com cachos caprichosos, agora caíam lisos e malcuidados em torno do rosto. A tinta escarlate nas garras de cinco centímetros estava lascada e faltavam umas pedrinhas nos seus óculos de asas. Ela tomou outro grande gole e perguntou a Harry pelo canto da boca:
— É uma garota bonita, Harry?
— Mais uma palavra sobre a vida amorosa de Harry e o trato está desfeito, eu juro — disse Hermione irritada.
— Que trato? — perguntou Rita, enxugando a boca com as costas da mão. —
Você ainda não tinha falado em trato, Srta. Certinha, só me disse para aparecer. Ah, um dia desses... — Ela inspirou profundamente estremecendo.
— Sei, sei, um dia desses você vai escrever mais histórias horrorosas sobre Harry e mim — retorquiu Hermione com indiferença. — Procure alguém que se interesse, por que não faz isso?
— Publicaram muitas histórias horrorosas sobre Harry este ano sem a minha ajuda — retrucou Rita, olhando-o enviesado por cima dos óculos e acrescentando num sussurro rouco. — Como foi que você se sentiu, Harry? Traído? Incompreendido?
— Harry sente raiva, é claro — respondeu Hermione com a voz dura e clara.
— Porque ele disse a verdade ao ministro da Magia e o ministro é idiota demais para acreditar.
— Então você na realidade continua a afirmar que Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado retornou? — perguntou Rita, baixando o copo e submetendo Harry a um olhar penetrante, enquanto seu dedo procurava ansiosamente o fecho da bolsa de crocodilo. — Você sustenta todas as bobagens que Dumbledore tem dito sobre Você-Sabe-Quem ter retornado e você ser a única testemunha?
— Eu não fui a única testemunha — vociferou Harry. — Havia mais de uma dúzia de Comensais da Morte presentes. Quer saber o nome deles?
— Adoraria saber — sussurrou Rita, agora tornando a mexer na bolsa, sem tirar os olhos de Harry como se o garoto fosse a coisa mais bonita que ela já vira. Uma enorme manchete: "Potter acusa..!' Um subtítulo "Harry Potter cita os nomes dos Comensais da Morte entre nós".
E embaixo uma bela fotografia "Adolescente perturbado que sobreviveu a um ataque de Você-Sabe-Quem, Harry Potter, 15 anos, provocou indignação ontem ao acusar membros respeitáveis e destacados da comunidade bruxa de serem Comensais da Morte..!'
A Pena de Repetição Rápida já estava na mão da repórter e a meio caminho da boca, quando a expressão arrebatada em seu rosto se desfez.
— Mas, naturalmente — disse baixando a pena e fuzilando Hermione com o olhar —, a Srta. Perfeição não iria querer ver essa história divulgada, não?
— Na verdade — disse Hermione com meiguice —, é exatamente o que a Srta. Perfeição deseja.
Rita arregalou os olhos para Hermione. E Harry também. Luna, por outro lado, cantarolou baixinho como se sonhasse "Weasley é nosso rei", e mexeu sua bebida com uma cebola de coquetel na ponta de um palito.
— Você quer que eu noticie o que ele diz a respeito de Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado? — perguntou Rita a Hermione em tom abafado.
— Quero. A história verdadeira. Todos os fatos. Exatamente como Harry os conta. Ele lhe dará todos os detalhes, lhe dirá os nomes dos Comensais da Morte não conhecidos do público que ele viu lá, Iludirá que aparência tem Voldemort agora; ah, controle-se — acrescentou com desdém, atirando o guardanapo sobre a mesa, pois, ao som do nome de Voldemort, Rita se assustara tanto que derramara metade do copo de uísque de fogo na roupa.
Rita enxugou a frente da capa de chuva encardida, ainda encarando Hermione. Então disse capengamente:
— O Profeta não publicaria isso. Caso você não tenha notado, ninguém acredita nessa conversa fiada. Todos acham que ele é delirante. Agora, se você me deixar escrever a notícia daquele ângulo...
— Não precisamos de outra notícia contando como foi que Harry ficou biruta! — exclamou Hermione zangada. — Já lemos muitas dessas, muito obrigada! Quero que ele tenha a oportunidade de contar a verdade!
— Não há mercado para uma notícia dessas — respondeu Rita com frieza.
— Você quer dizer que o Profeta não publicará porque Fudge não vai deixar — disse Hermione irritada.
Rita lançou a Hermione um olhar longo e duro. Então, curvando-se sobre a mesa se dirigiu à garota em tom objetivo.
— Muito bem, Fudge está ameaçando o Profeta, o que dá no mesmo. O jornal não vai publicar uma reportagem favorável a Harry. Ninguém quer lê-la. É contra o sentimento público. Essa última fuga de Azkaban já deixou as pessoas bem preocupadas. Ninguém quer acreditar que Você-Sabe-Quem retornou.
— Então o Profeta Diário existe para dizer às pessoas o que elas querem ouvir, é isso? — perguntou Hermione criticamente.
Rita tornou a se endireitar, as sobrancelhas erguidas, e virou seu copo de Uísque de Fogo.
— O Profeta existe para vender exemplares, sua tolinha — disse com frieza.
— Meu pai acha que é um péssimo jornal — comentou Luna, entrando inesperadamente na conversa. Chupando a cebolinha do seu coquetel, ela fixou em Rita seus olhos enormes, protuberantes, ligeiramente alucinados. — Meu pai divulga notícias importantes que acha que o público quer ler. Não está interessado em ganhar dinheiro.
Rita olhou depreciativamente para Luna.
— Dá para adivinhar que seu pai publica um jornaleco idiota de interior, não é? Provavelmente Vinte e Cinco Maneiras de se Misturar com os Trouxas e as datas dos próximos bazares.
— Não – respondeu Luna, tornando a mergulhar a cebolinha na água de gilly —, ele é o editor do Pasquim.
Rita soltou um bufo tão alto que as pessoas nas mesas próximas olharam assustadas.
— Notícias importantes que ele acha que o público deve saber, hein? — fulminou. — Eu poderia estrumar o meu jardim com o conteúdo daquele trapo.
— Bom, então esta é a sua chance de melhorar o conteúdo da revista, não? — sugeriu Hermione com gentileza. — Luna diz que o pai dela ficaria muito contente em fazer uma entrevista com Harry. Ele é quem irá publicá-la.
Rita encarou as garotas por um momento, então soltou gargalhadas.
— O Pasquim! — exclamou com um cacarejo. — Vocês acham que as pessoas vão levar Harry a sério se ele aparecer no Pasquim!
— Algumas pessoas não — disse Hermione com a voz controlada. — Mas a versão que o Profeta publicou da fuga de Azkaban tinha furos enormes. Acho que muita gente deverá estar se perguntando se não há uma explicação melhor para o que aconteceu, e se há uma história alternativa, mesmo que seja publicada por um... — olhou para Luna de esguelha — em um... bom, uma revista incomum... acho que essa gente poderia gostar de lê-la.
Rita ficou em silêncio por algum tempo, mas mirou Hermione astutamente, a cabeça um pouco inclinada para um lado.
— Tudo bem, vamos dizer por um momento que eu aceite — disse subitamente. — Que tipo de remuneração vou receber?
— Acho que papai não chega exatamente a pagar as pessoas para escreverem para a revista — disse Luna sonhadora. — Escrevem porque é uma honra e, naturalmente, para ver o nome delas em letra de imprensa.
A cara de Rita Skeeter ao se virar para Hermione era de quem achou outra vez forte o gosto do Palha-fede na boca.
— E para eu fazer isso de graça?
— Bom, é — disse Hermione calmamente, tomando um golinho da bebida. —
Do contrário, como você já sabe, informarei às autoridades que você nunca se registrou como animago. Naturalmente, o Profeta Diário talvez lhe pague um bom cachê por uma reportagem em primeira mão da vida em Azkaban.
Pela reação pareceu que nada daria mais prazer a Rita do que agarrar a sombrinha de papel que saía da bebida de Hermione e enfiá-la pelo nariz da garota adentro.
— Suponho que não tenha outra opção, não é? — disse com a voz ligeiramente trêmula. Abriu, então, a bolsa de crocodilo mais uma vez, apanhou um pergaminho e ergueu a Pena de Repetição Rápida.
— Papai vai ficar satisfeito — disse Luna animada. Um músculo tremeu no queixo de Rita.
— O.k., Harry? — perguntou Hermione, virando-se para o garoto. — Pronto para contar a verdade ao público?
— Suponho que sim — disse Harry observando Rita pôr em posição a Pena de Repetição Rápida sobre o pergaminho que os separava.
— Então, pode começar, Rita — disse Hermione serenamente, pescando uma cereja do fundo do copo.

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