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Unknown
junho 04, 2014
Capítulo 15
Rony, que em tempos passados poderia ter achado a necessidade desses desvios uma razão para ciúmes em vez de hilaridade, simplesmente rolava de rir com tudo isso. Harry, embora preferisse esse novo amigo risonho e brincalhão ao Rony cismado e agressivo que vinha aturando nas últimas semanas, pagava um alto preço por tal melhora. Primeiro, Harry tinha de tolerar a presença assídua de Lilá Brown, que parecia achar cada momento em que não estivesse beijando Rony um momento perdido; e segundo, Harry se encontrava mais uma vez na posição de melhor amigo de duas pessoas com pouca probabilidade de voltarem a se falar.
Rony, cujos braços e mãos ainda exibiam os arranhões e cortes do ataque dos passarinhos de Hermione, adotava um tom defensivo e rancoroso.
— Ela não pode reclamar — disse a Harry. — Andou aos beijos com o Krum. Agora achou alguém que quer andar aos beijos comigo. Bem, estamos em um país livre. Não estou fazendo nada de mais.
Harry não respondeu, fingiu estar concentrado no livro que deveriam ler para a aula de Feitiços na manhã seguinte (Quintessência: uma busca). Decidido como estava a continuar amigo de ambos, Rony e Hermione, ele passava grande parte do tempo muito calado.
— Nunca prometi nada a Hermione — resmungou Rony. — Quero dizer, tudo bem, eu ia à festa de Natal do Slughorn com ela, mas ela nunca disse... era só como amigo... não tenho compromisso...
Harry virou uma página do Quintessência, consciente de que o amigo o observava. A voz de Rony foi se tornando quase inaudível, abafada pelos fortes estalos do fogo na lareira, embora Harry pensasse ter ouvido as palavras “Krum” e “não pode reclamar” mais de uma vez.
O horário de Hermione era tão apertado que Harry só conseguia falar direito com a amiga à noite, quando Rony ficava tão grudado em Lilá que nem notava o que Harry estava fazendo. Hermione se recusava a sentar na sala comunal enquanto Rony ali estivesse, então Harry, em geral, ia ao seu encontro na biblioteca, o que significava que conversavam aos sussurros.
— Ele tem toda liberdade de beijar quem quiser — disse Hermione enquanto a bibliotecária, Madame Pince, rondava pelas estantes às suas costas. — Não estou nem aí.
Ergueu a pena e pôs um pingo no “i” com tanta ferocidade que perfurou o pergaminho. Harry ficou calado, e refletiu que logo sua voz desapareceria por falta de uso. Curvou-se um pouco mais para o Estudos avançados no preparo de poções e continuou a tomar notas sobre os Elixires Perenes, parando de vez em quando para decifrar os adendos tão úteis do Príncipe ao texto de Libatius Borage.
— E por falar nisso — lembrou Hermione passado algum tempo —, você precisa se cuidar.
— Pela última vez — respondeu Harry, num sussurro ligeiramente rouco depois de quarenta e cinco minutos de silêncio —, não vou devolver este livro, aprendi mais com o Príncipe Mestiço do que Snape e Slughorn me ensinaram em...
— Não estou falando desse idiota que se intitula Príncipe — replicou Hermione, lançando um olhar irritado ao livro como se ele lhe tivesse feito uma grosseria. — Estou falando de hoje mais cedo. Entrei no banheiro pouco antes de vir para cá e tinha umas doze garotas lá, inclusive aquela Romilda Vane, discutindo meios de dar a você uma poção de amor. Todas têm esperança de fazer você levá-las à festa do Slughorn, e todas parecem ter comprado as poções de amor de Fred e Jorge, que, lamento dizer, provavelmente funcionam...
— Por que você não as confiscou? — quis saber Harry. Parecia extraordinário que a mania de Hermione de defender o regulamento pudesse tê-la abandonado nesse momento crítico.
— Elas não tinham levado as poções para o banheiro — respondeu com desdém. — Estavam apenas discutindo táticas. E, como duvido que mesmo o Príncipe Mestiço — ela lançou outro olhar irritado ao livro — pudesse inventar um antídoto que neutralizasse doze poções diferentes, se eu fosse você convidaria alguém para acompanhá-lo: isto faria as outras pararem de pensar que têm chance. É amanhã à noite, e as garotas estão ficando desesperadas.
— Não tem ninguém que eu queira convidar — murmurou Harry, que ainda tentava não pensar em Gina mais do que era inevitável, ainda que a garota não parasse de aparecer em seus sonhos em tais situações que ele agradecia aos céus que Rony não fosse apto em Legilimência.
— Bem, tenha cuidado com o que beber, porque, pelo jeito, a Romilda Vane não estava brincando — disse Hermione séria.
Ela puxou para cima da mesa um longo pergaminho em que estava fazendo o trabalho de Aritmancia, e continuou a arranhá-lo com a pena. Harry a observava com o pensamento muito distante.
— Calma aí um instante — disse ele lentamente. — Pensei que Filch tivesse proibido artigos comprados na Gemialidades Weasley.
— E algum dia alguém ligou para o que Filch proíbe? — perguntou Hermione, ainda concentrada no seu trabalho.
— Mas pensei que todas as corujas estivessem sendo revistadas. Como é que essas garotas conseguem trazer poções de amor para a escola?
— Fred e Jorge despacham as poções camufladas de perfume ou xarope para tosse. Faz parte do seu Serviço de Encomenda-Coruja.
— Você está por dentro, hein?
Hermione lhe lançou o mesmo olhar irritado que acabara de dar ao livro de Estudos avançados no preparo de poções.
— Estava tudo impresso no verso das garrafas que eles mostraram a Gina e a mim no verão — informou ela com frieza. — Não ando por aí pondo poções nas bebidas das pessoas... nem fingindo que ponho, o que é igualmente sério...
— É, bem, deixa isso para lá — disse Harry depressa. — A questão é que estão enganando o Filch. Essas garotas estão trazendo artigos para a escola camuflados de outra coisa! Então por que Malfoy não poderia ter trazido o colar...?
— Ah, Harry... outra vez...?
— Responde por que não, vai?
— Olha — suspirou Hermione —, sensores de segredos detectam feitiços, maldições e azarações lançados para ocultar, não é? São usados para descobrir magia das Trevas e objetos das Trevas. Teriam apanhado em segundos uma maldição poderosa como a daquele colar. Mas não registrariam uma coisa que foi posta em um frasco diferente... e, de qualquer modo, as poções de amor não são das Trevas nem perigosas...
— Para você é fácil falar — murmurou Harry, pensando em Romilda Vane.
— ...então Filch é quem teria de perceber se era ou não era um xarope para tosse, e ele não é um bruxo muito competente, duvido que saiba diferenciar uma poção de...
Hermione parou de repente; Harry pressentiu também. Alguém se aproximara entre as estantes escuras. Eles aguardaram e, um momento depois, o rosto rapineiro de Madame Pince surgiu no fim da estante, as faces encovadas, a pele de pergaminho e o longo nariz curvo iluminados desfavoravelmente pelo lampião que ela segurava.
— A biblioteca acabou de fechar — anunciou ela. — Cuide de devolver o que apanhou emprestado à prateleira corret... que é que você andou fazendo com esse livro, seu garoto depravado?
— Não é da biblioteca, é meu! — apressou-se a explicar Harry, arrebatando o Estudos avançados no preparo de poções quando ela estendeu para o livro a mão que lembrava uma garra.
— Espoliado! — sibilou Madame Pince. — Profanado! Conspurcado!
— É só um livro em que alguém escreveu! — disse Harry, arrancando-o das mãos dela.
A bruxa parecia que ia ter uma apoplexia; Hermione, que recolhera apressadamente suas coisas, agarrou Harry pelo braço e arrastou-o à força para longe dali.
— Ela expulsa você da biblioteca, se não se cuidar. Por que foi trazer esse livro idiota?
— Não é minha culpa que ela seja doida de pedra, Hermione. Ou será que ela ouviu você falando mal do Filch? Sempre achei que houvesse alguma coisa entre os dois...
— Oh, ah, ah...
Aproveitando que podiam falar normalmente outra vez, eles voltaram à sala comunal pelos corredores desertos e iluminados por lampiões, discutindo se Filch e Madame Pince estariam secretamente apaixonados.
— Bolas Festivas — Harry disse à Mulher Gorda a nova senha natalina.
— Igualmente — respondeu a Mulher Gorda com uma risadinha marota e girando para admitir os dois.
— Oi, Harry! — exclamou Romilda Vane, no instante em que ele entrou pelo buraco do retrato. — Quer tomar uma água de gilly?
Hermione lançou ao amigo um olhar “Que-foi-que-eu-disse?”, por cima do ombro.
— Não, obrigado — respondeu Harry ligeiro. — Não gosto muito.
— Bem, então aceite uns bombons — disse a garota, empurrando em suas mãos caldeirões de chocolate recheados com uísque de fogo. — Minha avó mandou para mim, mas não gosto.
— Ah, tá, muito obrigado — agradeceu Harry, que não conseguia pensar em nada mais para dizer. — Ah... vou um instante ali com...
Deixando a frase morrer, ele correu atrás de Hermione.
— Eu falei — resumiu ela. — Quanto mais cedo convidar alguém, mais cedo elas vão deixar você em paz e então vai poder...
Mas seu rosto repentinamente vidrou; acabara de ver Rony e Lilá, entrelaçados na mesma poltrona.
— Bem, boa-noite, Harry — disse, embora fossem apenas sete horas da noite, e seguiu para o dormitório das garotas sem dizer mais nada.
Harry foi se deitar, consolando-se com o pensamento de que faltava agüentar apenas um dia de aulas e a festa de Slughorn, depois do que ele e Rony poderiam viajar para A Toca. Parecia agora impossível que Rony e Hermione fizessem as pazes antes do início das férias, mas, quem sabe, o intervalo desse para eles se acalmarem, refletirem sobre sua maneira de agir...
Mas sua esperança não era grande, e se tornou ainda menor depois de aturar uma aula de Transfiguração com os dois, no dia seguinte. A turma tinha acabado de entrar no tópico extremamente difícil da transfiguração humana; trabalhando diante de espelhos, deviam mudar a cor das próprias sobrancelhas. Hermione riu sem piedade dos insucessos iniciais de Rony, durante os quais ele conseguiu se presentear com um espetacular bigode em forma de guidão; Rony retaliou, fazendo uma imitação cruel, mas exata, de Hermione levantando e sentando sem parar cada vez que a professora McGonagall fazia uma pergunta, coisa que Lilá e Parvati acharam engraçadíssima e que, mais uma vez, levou Hermione quase às lágrimas. Ela saiu correndo da sala quando ouviram a sineta, largando metade do material; Harry decidiu que, naquele momento, Hermione precisava mais dele do que Rony. Então, recolheu as coisas da amiga e seguiu-a.
Alcançou-a finalmente quando ela saía do banheiro das garotas um andar abaixo. Vinha em companhia de Luna Lovegood, que lhe dava palmadinhas distraídas nas costas.
— Ah, olá, Harry — disse Luna. — Você está sabendo que uma de suas sobrancelhas está amarelona?
— Oi, Luna. Hermione, você deixou seu material... E estendeu-lhe os livros.
— Ah, sim — falou Hermione com a voz embargada, apanhando as coisas e dando as costas depressa para esconder que estava secando os olhos com o estojo de lápis. — Obrigada, Harry. Bem, é melhor eu ir andando...
E se afastou ligeiro, sem dar a Harry tempo para dizer umas palavrinhas de consolo, embora ele tivesse que admitir que não conseguia pensar em nenhuma.
— Ela está meio chateada — disse Luna. — A princípio, pensei que fosse a Murta-Que-Geme no banheiro, mas era a Hermione. Ela falou alguma coisa sobre aquele Rony Weasley...
— É, eles brigaram.
— Ele às vezes diz coisas muitos engraçadas, não acha? — comentou Luna, quando saíram juntos pelo corredor. — Mas sabe ser grosseiro. Reparei isso no ano passado.
— Suponho que sim — disse Harry. Luna estava manifestando o seu talento para dizer verdades incômodas; Harry jamais conhecera alguém como ela. — Então, teve um bom trimestre?
— Ah, foi bom. Um pouco solitário sem a AD. Gina tem sido legal. Outro dia ela fez dois garotos pararem de me chamar de Di-lua na aula de Transfiguração...
— Você gostaria de ir comigo à festa de Slughorn hoje à noite? — As palavras escaparam da boca de Harry antes que pudesse contê-las; ouviu-as como se um desconhecido as falasse.
Luna virou aqueles seus olhos saltados para ele, surpresa.
— A festa de Slughorn? Com você?
— É. Ele pediu para levarmos convidados, então achei que você talvez... quero dizer... — Ele queria deixar suas intenções perfeitamente claras. — Quero dizer, como amigos, sabe. Mas se você não quiser...
Ele já estava desejando que ela não quisesse.
— Ah, não, adoraria ir com você como amiga! — respondeu Luna, sorrindo como ele jamais a vira fazer. — Ninguém nunca me convidou para uma festa antes, como amiga! Foi por isso que você tingiu a sobrancelha, para a festa? Devo tingir a minha também?
— Não — replicou Harry com firmeza —, foi um engano, vou pedir a Hermione para consertar para mim. Então, encontro você no saguão de entrada às oito horas.
— AH-AH! — berrou uma voz do alto, e eles se sobressaltaram; sem perceber, tinham passado bem embaixo de Pirraça, que estava pendurado de cabeça para baixo em um lustre e sorria maliciosamente para os dois.
— Pirado convidou Luna para ir a festa! Pirado ama Di-lua! Pirado aaaaama Di-luuuuuua! E afastou-se, veloz, gargalhando e gritando: “Pirado ama Di-lua!”
— É legal ter privacidade — comentou Harry. E, de fato, em pouco tempo a escola inteira parecia saber que Harry Potter ia levar Luna Lovegood à festa de Slughorn.
— Você podia ter levado qualquer garota! — disse Rony, incrédulo, ao jantar. — Qualquer garota! E você escolheu a Di-lua Lovegood?
— Não chame a Luna assim, Rony — falou Gina asperamente, parando atrás de Harry quando ia se reunir aos seus amigos. — Fico realmente feliz que você esteja levando a Luna, Harry, ela está tão animada!
E continuou andando ao longo da mesa, para se sentar com o Dino. Harry tentou se alegrar que Gina tivesse gostado do seu convite à Luna, mas não conseguiu. A uma boa distância, Hermione estava sozinha à mesa, brincando com o picadinho no prato. Harry percebeu que Rony lhe dava olhadelas furtivas.
— Você podia pedir desculpas — sugeriu ele bruscamente.
— Quê, para ser atacado por outro bando de canários? — murmurou Rony.
— Para que você foi imitar Hermione?
— Ela riu do meu bigode!
— Eu também ri, foi a coisa mais burra que eu já vi.
Mas Rony não pareceu ter ouvido; Lilá acabara de chegar com Parvati. Apertando-se entre Harry e Rony, Lilá atirou os braços no pescoço de Rony.
— Oi, Harry — cumprimentou Parvati, que, como ele, parecia meio constrangida e chateada com o comportamento dos dois amigos.
— Oi — respondeu Harry. — Como vai? Vai ficar em Hogwarts, então? Soube que seus pais queriam que você saísse da escola.
— Por ora, consegui convencê-los a desistir — respondeu Parvati. — Aquela coisa com a Katie deixou os dois apavorados, mas como não aconteceu mais nada... ah, oi, Hermione!
Parvati sem dúvida sorria. Harry achou que estava sentindo remorsos por ter rido de Hermione na aula de Transfiguração. Virou-se e viu que sua amiga retribuía o sorriso, se é que isso era possível, ainda mais animadamente. As garotas às vezes eram muito estranhas.
— Oi, Parvati! — respondeu Hermione, ignorando totalmente Rony e Lilá. — Você vai à festa do Slughorn hoje à noite?
— Nenhum convite — resumiu Parvati tristemente. — Mas adoraria ir, parece que vai ser realmente boa... você vai, não é?
— Vou, marquei com Córmaco às oito, e nós...
Houve um ruído semelhante ao de alguém puxando um desentupidor de uma pia entupida, e Rony voltou à tona. Hermione agiu como se não tivesse visto nem ouvido nada.
— ...vamos à festa juntos.
— Córmaco? — repetiu Parvati. — Você quer dizer o Córmaco McLaggen?
— O próprio — disse Hermione com meiguice. — Aquele que quase — ela deu grande ênfase à palavra — foi goleiro da Grifinória.
— Então vocês estão namorando? — perguntou Parvati, de olhos arregalados.
— Ah... estamos... você não sabia? — falou Hermione, com uma risadinha que não parecia sua.
— Não! — exclamou Parvati, manifestando curiosidade pela fofoca.
— Uau, você gosta mesmo de jogadores de quadribol, não é? Primeiro o Krum, agora o McLaggen...
— Eu gosto de jogadores de quadribol muito bons — corrigiu-a Hermione, ainda sorrindo. — Bem, a gente se vê... tenho de me arrumar para a festa...
Ela saiu. Na mesma hora, Lilá e Parvati juntaram as cabeças para discutir o novo acontecimento, repassando tudo que já tinham ouvido falar de McLaggen e tudo que tinham imaginado sobre Hermione. Rony pareceu estranhamente inexpressivo, e nada disse. Harry viu-se refletindo em silêncio sobre as profundezas a que descem as garotas para se vingar.
Quando ele chegou ao saguão de entrada às oito horas, encontrou um número anormal de garotas por ali, todas olhando-o com visível ressentimento quando se aproximou de Luna. Ela estava usando vestes prateadas com estrelas que atraíram risinhos das outras, mas, afora isto, estava bem bonita. De qualquer forma, Harry ficou contente que ela não estivesse usando os brincos de nabos, o colar de rolhas de cerveja amanteigada e os espectrocs.
— Oi — cumprimentou ele. — Vamos andando, então?
— Ah, vamos — respondeu ela feliz. — Onde é a festa?
— Na sala de Slughorn — disse ele, conduzindo-a para longe dos olhares e cochichos pela escadaria de mármore. — Você ouviu falar que deve ir um vampiro?
— Rufo Scrimgeour?
— ...quê? — exclamou Harry desconcertado. — Você quer dizer o ministro da Magia?
— É, ele é um vampiro — disse Luna banalmente. — Papai escreveu um artigo bem longo sobre isso quando Rufo Scrimgeour assumiu o cargo de Cornélio Fudge, mas foi obrigado por alguém do Ministério a não publicar. Obviamente eles não gostariam que a verdade fosse revelada!
Harry, que achava muito improvável que Rufo Scrimgeour fosse um vampiro, mas estava acostumado ao hábito de Luna de repetir as bizarras opiniões do pai como se fossem fatos, não respondeu; já estavam se aproximando da sala de Slughorn e os sons de risos, música e conversas em voz alta aumentavam a cada passo.
Fosse porque tivesse sido construída assim, fosse porque ele tivesse usado a magia para deixá-la assim, a sala de Slughorn era muito maior do que o escritório normal de um professor. O teto e as paredes tinham sido forrados com panos esmeralda, carmim e dourado, para dar a impressão de que se encontravam no interior de uma vasta tenda. A sala estava cheia e abafada, imersa na luz vermelha que o ornamentado lampião dourado projetava do centro do teto, onde esvoaçavam fadinhas de verdade, cada qual um pontinho brilhante de luz. Uma cantoria, aparentemente acompanhada por bandolins, subia de um canto distante; uma névoa de fumaça de cachimbo pairava sobre vários bruxos idosos absortos em conversa, e numerosos elfos domésticos se deslocavam entre uma floresta de joelhos, sombreados pelas pesadas travessas de prata com comida que seguravam, parecendo mesinhas móveis.
— Harry, meu rapaz! — trovejou Slughorn, quase na mesma hora em que Harry e Luna espremiam-se pela porta para entrar. — Entre, entre, há tanta gente que eu gostaria que você conhecesse!
Slughorn usava um chapéu de veludo com borlas combinando com o smoking. Apertando o braço de Harry com tanta força que parecia querer desaparatar com ele, Slughorn o conduziu, decidido para a festa; Harry agarrou a mão de Luna e arrastou-a com ele.
— Harry, gostaria que você conhecesse Eldred Worple, um ex-aluno meu, autor deIrmãos de sangue: minha vida entre os vampiros... e, é claro, seu amigo Sanguini.
Worple, que era um homem pequeno, de óculos, agarrou a mão de Harry e sacudiu-a com entusiasmo; o vampiro Sanguini, alto e emaciado, com escuras olheiras sob os olhos, fez apenas um aceno com a cabeça. Parecia entediado. Havia um bando de garotas por perto, demonstrando curiosidade e excitação.
— Harry Potter, estou simplesmente encantado! — exclamou Worple, fitando miopemente o rosto de Harry. — Ainda outro dia comentei com o professor Slughorn: “Onde está a biografia de Harry Potter pela qual todos estamos esperando?”
— Ãh — atrapalhou-se Harry —, o senhor está?
— Modesto como Horácio o descreveu! — comentou Worple. — Mas falando seriamente... — e sua atitude mudou, de repente, tornando-se objetiva —, eu teria prazer de escrevê-la... as pessoas estão ansiosas por conhecer você melhor, meu caro rapaz, ansiosas! Se você se dispusesse a me conceder algumas entrevistas, digamos, quatro ou cinco sessões, ora, poderíamos concluir o livro em poucos meses. E isso com muito pouco esforço de sua parte, posso lhe assegurar; pergunte a Sanguini aqui se não é... Sanguini, fique aqui! — acrescentou Worple, com súbita severidade, porque o vampiro estava se esgueirando em direção ao grupo de garotas próximo, com uma certa voracidade no olhar. — Tome aqui uma empadinha — disse Worple, apanhando uma da travessa de um elfo que passava e metendo-a na mão de Sanguini antes de voltar sua atenção a Harry.
— Meu caro rapaz, o ouro que poderia ganhar, você nem faz idéia...
— Decididamente não estou interessado — respondeu Harry com firmeza —, e acabei de ver uma amiga minha, lamento.
Ele puxou Luna pela multidão; acabara realmente de ver uma longa juba de cabelos castanhos desaparecer, entre dois componentes do grupo As Esquisitonas, ou assim lhe pareceu.
— Hermione! Hermione!
— Harry! Aí está você, que bom! Oi, Luna!
— Que aconteceu com você? — perguntou Harry, porque Hermione parecia visivelmente desarrumada, como se tivesse acabado de lutar para se livrar de uma moita de visgo-do-diabo.
— Ah, acabei de fugir... quero dizer, acabei de deixar o Córmaco. Debaixo do visgo — acrescentou, à guisa de explicação, porque Harry continuava a fitá-la com um ar de curiosidade.
— Bem feito por ter vindo com ele — disse ele severamente.
— Achei que era quem mais aborreceria o Rony — disse Hermione, sem emoção. — Fiquei um instante em dúvida se convidaria o Zacarias Smith, mas achei que, de modo geral...
— Você pensou em vir com o Smith? — exclamou Harry revoltado.
— Pensei, e estou começando a desejar que tivesse vindo; McLaggen faz Grope parecer um cavalheiro. Vamos por aqui, poderemos ver quando ele vier, é tão alto...
Os três se dirigiram ao lado oposto da sala, apanhando taças de hidromel no caminho, mas perceberam, tarde demais, que a professora Trelawney estava parada ali sozinha.
— Olá — Luna cumprimentou-a gentilmente.
— Boa-noite, minha querida — disse a professora, focalizando a garota com alguma dificuldade. Novamente Harry sentiu cheiro de xerez culinário. — Não tenho visto você nas minhas aulas ultimamente...
— Não, fiquei com Firenze este ano — disse Luna.
— Ah, é claro — replicou a professora, com raiva, dando uma risadinha bêbada. — Ou Dobbin, como prefiro imaginá-lo. Seria de pensar, não é mesmo, que, agora que voltei para a escola, o professor Dumbledore se livrasse do cavalo. Mas não... dividimos as turmas... é um insulto, francamente, um insulto. Você sabe que...
A professora Trelawney parecia tonta demais para reconhecer Harry. Aproveitando as furiosas críticas a Firenze, ele chegou mais perto de Hermione e disse:
— Vamos nos entender. Você está pretendendo dizer ao Rony que interferiu nos testes para goleiro?
Hermione ergueu as sobrancelhas.
— Você realmente acha que eu me rebaixaria a tanto?
Harry lançou-lhe um olhar astuto.
— Hermione, se você tem coragem de convidar McLaggen...
— Há uma diferença — respondeu ela com dignidade. — Não tenho a menor intenção de contar a Rony o que poderia ou não ter acontecido nos testes.
— Ótimo — replicou Harry com fervor. — Porque ele ficaria arrasado de novo, e perderíamos o próximo jogo...
— Quadribol! — exclamou Hermione zangada. — É só nisso que vocês garotos pensam? Córmaco não fez uma única pergunta sobre mim, não, me brindou com Cem Grandes Defesas Feitas por Córmaco McLaggen sem intervalos... ah, não, lá vem ele!
Ela se mexeu com tanta rapidez que parecia ter desaparatado; num momento estava ali e no momento seguinte se espremera entre duas bruxas às gargalhadas e sumira.
— Viram Hermione? — perguntou McLaggen um minuto depois, forçando caminho por um grupo compacto.
— Não, lamento — disse Harry, e virou-se depressa para participar da conversa de Luna, esquecendo-se, por uma fração de segundo, de com quem ela estava conversando.
— Harry Potter! — exclamou a professora em tons graves e vibrantes, reparando nele pela primeira vez.
— Oh, olá — respondeu ele sem entusiasmo.
— Meu querido rapaz! — disse Trelawney, com um sussurro muito audível. — Os boatos! As histórias! O Eleito! É claro que sei disso há muito tempo... os augúrios nunca foram favoráveis, Harry... mas por que você não voltou às aulas de Adivinhação? Para você, mais do que para os demais, a matéria é da máxima importância!
— Ah, Sibila, todos achamos que a nossa matéria é da máxima importância! — disse uma voz alta, e Slughorn apareceu ao lado da professora Trelawney, o rosto muito vermelho, o chapéu de veludo um pouco enviesado na cabeça, um copo de hidromel em uma das mãos e uma enorme torta de frutas secas e especiarias na outra. — Mas acho que jamais conheci alguém com tanto talento para Poções! — comentou o professor, lançando a Harry um olhar carinhoso, embora com os olhos injetados. — Instintivo, sabe, como a mãe! Poucas vezes na vida tive alunos com tal habilidade, posso lhe afirmar, Sibila... ora, nem Severo...
E, para horror de Harry, Slughorn fez um gesto amplo com o braço e pareceu materializar Snape, que veio em sua direção.
— Pare de se esquivar e venha se reunir a nós, Severo! — disse, alegre, Slughorn entre soluços. — Eu estava justamente falando sobre a excepcional preparação de Poções de Harry! Parte do crédito é seu, naturalmente, já que foi seu professor durante cinco anos!
Preso pelo braço de Slughorn em seus ombros, Snape olhou do alto do seu nariz curvo para Harry, apertando seus olhos negros.
— Engraçado, jamais tive a impressão de ter conseguido ensinar alguma coisa a Potter.
— Então é uma habilidade natural! — gritou Slughorn. — Você devia ter visto o que ele me entregou na primeira aula, a Poção do Morto-Vivo, nunca um estudante se saiu melhor na primeira tentativa, acho que nem mesmo você, Severo...
— Sério? — admirou-se Snape em voz baixa, seus olhos perfurando Harry, que sentiu uma certa inquietação. A última coisa que queria no mundo era Snape investigando a fonte de sua recém-descoberta genialidade em Poções.
— Que outras matérias você está estudando mesmo, Harry? — perguntou Slughorn.
— Defesa contra as Artes das Trevas, Feitiços, Transfiguração, Herbologia...
— Em suma, todas as exigidas para ser auror — concluiu Snape, com leve desdém.
— É, bem, é o que eu gostaria de ser — respondeu Harry em tom de desafio.
— E dará um grande auror! — trovejou Slughorn.
— Acho que você não deveria ser auror, Harry — interpôs Luna, inesperadamente. Todos olharam para ela. — Os aurores fazem parte da Conspiração Dente-podre. Pensei que todo o mundo soubesse. Estão trabalhando por dentro para derrubar o Ministério da Magia, usando uma combinação de Artes das Trevas e gomose.
Harry inalou metade do seu hidromel pelo nariz quando começou a rir. Sem dúvida, valera a pena trazer Luna só por aquilo.
Tirando o rosto da taça, tossindo e molhado, mas ainda rindo, ele viu algo que era certo elevar sua animação às nuvens: Argo Filch vinha em direção ao grupo arrastando Draco Malfoy pela orelha.
— Professor Slughorn — chiou o zelador, as bochechas tremendo e nos olhos saltados o brilho maníaco ao descobrir malfeitos. — Encontrei este rapaz se esgueirando por um corredor lá de cima. Ele diz que foi convidado para a sua festa e se atrasou na saída. O senhor lhe mandou convite?
Malfoy se desvencilhou do aperto de Filch, furioso.
— Está bem, não fui convidado — respondeu com raiva. — Eu estava tentando penetrar na festa, satisfeito?
— Não, não estou! — retrucou Filch, uma afirmação em total desacordo com a alegria em seu rosto. — Você está encrencado, ora se está! O diretor não avisou que não queria ninguém nos corredores à noite, a não ser que a pessoa tivesse permissão, não avisou, eh?
— Tudo bem, Argo, tudo bem — disse Slughorn, com um aceno de mão. — Hoje é Natal, e não é crime ter vontade de ir a uma festa. Só desta vez, vamos esquecer o castigo; você pode ficar, Draco.
A expressão de indignação e desapontamento de Filch era perfeitamente previsível, mas por que, perguntou-se Harry, observando o colega, Malfoy pareceu igualmente infeliz? E por que Snape estava olhando para Malfoy como se sentisse ao mesmo tempo raiva... e seria possível?... um pouco de receio?
Mas, antes que Harry registrasse o que vira, Filch deu as costas e se afastou, arrastando os pés, resmungando baixinho; Malfoy conseguiu produzir um sorriso e agradeceu a Slughorn por sua generosidade, a expressão de Snape suavemente retomou sua impenetrabilidade.
— De nada, de nada — disse Slughorn, dispensando os agradecimentos de Malfoy. — Afinal, eu conheci o seu avô...
— Ele sempre o elogiou muito, senhor — apressou-se em dizer Malfoy. — Dizia que o senhor era o melhor preparador de poções que ele tinha conhecido...
Harry encarou Malfoy. Não era o puxa-saquismo que o intrigava; vira-o fazer isso com Snape durante anos. Era o fato de que Malfoy parecia doente. Era a primeira vez em muito tempo que via o colega bem de perto; e notava que apresentava olheiras escuras sob os olhos e um nítido tom acinzentado na pele.
— Gostaria de dar uma palavra com você, Draco — disse Snape subitamente.
— Ora, vamos Severo — falou Slughorn, com mais soluços. — É Natal, não seja tão duro...
— Sou o diretor da Casa dele e cabe a mim decidir se devo ou não ser duro — retrucou rispidamente. — Venha comigo, Draco.
Os dois se retiraram, Snape à frente, Malfoy parecia ressentido. Harry hesitou um momento, então disse:
— Volto em um instante, Luna... ã... banheiro.
— Tudo bem — respondeu Luna, animada, e Harry, ao sair ligeiro entre os convidados, pensou tê-la ouvido retomar a Conspiração Dente-podre com a professora Trelawney, que parecia sinceramente interessada.
Foi fácil, uma vez fora da festa, tirar do bolso a Capa da Invisibilidade e se cobrir, porque o corredor estava deserto. O mais difícil foi encontrar Snape e Malfoy. Harry saiu correndo, o ruído de seus passos mascarado pela música e as conversas altas que vinham da sala de Slughorn. Talvez Snape o tivesse levado à sua sala nas masmorras... ou talvez o acompanhasse de volta à sala comunal da Sonserina... Harry encostou o ouvido a cada porta do corredor pela qual passou apressado até que, muito surpreso e excitado, curvou-se para o buraco da fechadura da última sala e ouviu vozes.
— ...não pode se dar ao luxo de errar, Draco, porque se você for expulso...
— Não tive nada a ver com isso, está bem?
— Espero que esteja dizendo a verdade, porque foi malfeito e tolo. Já suspeitam que você tenha um dedo no incidente.
— Quem suspeita de mim? — perguntou Malfoy com raiva. — Pela última vez, não fui eu, entende? Aquela garota, Bell, deve ter um inimigo que ninguém conhece... não me olhe assim! Sei o que você está fazendo. Não sou burro, mas não vai funcionar... posso impedi-lo!
Houve uma pausa, e então Snape disse baixinho:
— Ah... tia Belatriz tem lhe ensinado Oclumência, entendo. Que pensamentos você está tentando esconder do seu senhor, Draco?
— Não estou tentando esconder nada dele, só não quero que você penetre a minha mente!
Harry comprimiu mais o ouvido no buraco da fechadura... que acontecera para Malfoy falar desse jeito com Snape, o professor que ele sempre demonstrara respeitar e até gostar?
— Então é por isso que você tem me evitado este trimestre? Tem medo da minha interferência? Você percebe que se outro aluno não fosse à minha sala quando eu mandasse, e mais de uma vez, Draco...
— Então me dê uma detenção! Dê queixa de mim ao Dumbledore! — caçoou Malfoy. Houve outra pausa. Então Snape falou:
— Você sabe perfeitamente que não quero fazer nenhuma das duas coisas.
— Então é melhor parar de me mandar ir à sua sala!
— Escute aqui — disse Snape, a voz tão baixa que Harry teve de comprimir o ouvido com força contra o buraco para ouvir. — Estou tentando ajudá-lo. Jurei a sua mãe que o protegeria. Fiz um Voto Perpétuo, Draco...
— Pois parece que vai ter de quebrá-lo, porque não preciso da sua proteção! A tarefa é minha, eu a recebi dele e estou cumprindo-a. Tenho um plano que vai dar resultado, só está levando um pouco mais de tempo do que pensei!
— Qual é o seu plano?
— Não é da sua conta!
— Se me contar o que está tentando fazer, posso ajudá-lo...
— Tenho toda a ajuda de que preciso, obrigado, não estou sozinho!
— Mas certamente estava hoje à noite, no que foi extremamente tolo, andar pelos corredores sem vigias nem cobertura. São erros elementares...
— Eu teria Crabbe e Goyle comigo, se você não tivesse detido os dois!
— Fale baixo! — disse Snape com violência, porque Malfoy alteara a voz agitado. — Se os seus amigos Crabbe e Goyle pretendem passar no N.O.M. de Defesa contra as Artes das Trevas desta vez, terão de se esforçar mais do que estão fazendo no momen...
— Que diferença faz isso? — interrompeu-o Malfoy. — Defesa contra as Artes das Trevas é uma piada, não é, uma encenação? Como se algum de nós precisasse se proteger contra as Artes das Trevas...
— É uma encenação decisiva para o sucesso, Draco! — lembrou Snape. — Onde é que você pensa que eu estaria todos esses anos se eu não soubesse como representar? Agora me escute! Você está sendo imprudente, andando pela escola à noite e sendo apanhado, e se está confiando na ajuda de Crabbe e Goyle...
— Eles não são os únicos. Tenho mais gente do meu lado, gente melhor!
— Então por que não confiar em mim, posso...
— Sei o que está pretendendo! Você quer roubar a minha glória! Houve mais uma pausa, então Snape disse com frieza:
— Você está falando como uma criança. Compreendo que a captura e a prisão do seu pai o tenham deixado perturbado, mas...
Harry teve menos de um segundo de aviso; ouviu os passos de Malfoy do outro lado da porta e se atirou para fora do caminho na hora em que a porta se escancarava; Malfoy afastou-se em passos largos pelo corredor, passou pela porta aberta da sala de Slughorn, contornou um canto distante e desapareceu de vista.
Mal ousando respirar, Harry continuou agachado vendo Snape sair lentamente da sala de aula. Com uma expressão insondável, ele voltou à festa. Harry permaneceu ali, oculto pela capa com os pensamentos em disparada.