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- A cicatriz
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Unknown
junho 05, 2014
Capítulo 2
Ele se sentou, uma das mãos ainda na cicatriz, a outra estendida no escuro à procura dos óculos que deixara na mesa-de-cabeceira. Ele os colocou e o quarto entrou em foco, iluminado por uma luz fraca e enevoada vinda de um lampião de rua fora da janela.
Harry tornou a passar os dedos pela cicatriz. Continuava dolorida. Ele acendeu o abajur ao seu lado, saiu da cama, atravessou o quarto, abriu o guarda-roupa e espiou no espelho que havia do lado interno da porta. Um menino magricela de catorze anos olhou para ele, os olhos muito verdes e intrigados sob os cabelos negros em desalinho. Examinou com mais atenção a cicatriz em sua imagem. Parecia normal, mas continuava ardendo.
Harry tentou se lembrar do que estivera sonhando antes de acordar.
Parecera tão real... Havia duas pessoas que ele conhecia e uma que não conhecia... Ele se concentrou, enrugando a testa, tentando se lembrar...
Veio à sua mente a imagem pouco nítida de um quarto escuro... Havia uma cobra em cima de um tapete diante da lareira... Um homenzinho chamado Pedro, de apelido Rabicho... E uma voz aguda e fria... A voz de Lord Voldemort. Só de pensar, Harry teve a sensação de que uma pedra de gelo estava descendo para o seu estômago...
Fechou os olhos com força e tentou se lembrar que aparência tinha Voldemort, mas foi impossível... Tudo que Harry sabia era que, no momento em que a poltrona girara, vira o que estava sentado nela, sentira um espasmo de horror que o acordara... Ou fora a dor na cicatriz?
E quem era o velho? Porque sem dúvida havia um velho; Harry o vira cair no chão. Tudo estava ficando confuso; o garoto levou as mãos ao rosto tampando a visão do quarto em que estava, tentando reter a imagem daquele outro mal iluminado, mas era o mesmo que tentar segurar água com as mãos; os detalhes agora desapareciam com a mesma rapidez com que ele tentava retê-los...
Voldemort e Rabicho estiveram conversando sobre alguém que haviam matado, embora Harry não conseguisse lembrar o nome... E estiveram planejando matar mais alguém... Ele...
Harry tirou as mãos do rosto, abriu os olhos e contemplou o quarto a toda a volta como se esperasse ver alguma coisa diferente ali. Como era de esperar, havia uma quantidade extraordinária de coisas diferentes em seu quarto. Havia um malão de madeira aberto ao pé da cama, deixando à mostra um caldeirão, uma vassoura, vestes negras e vários livros de feitiços. Rolos de pergaminho atulhavam a parte do tampo de sua escrivaninha que não estava levantada por causa de uma enorme gaiola vazia, em que sua coruja muito branca, Edwiges, normalmente se encarrapitava. No chão ao lado de sua cama havia um livro aberto; ele o estivera lendo antes de adormecer na véspera. As ilustrações do livro se mexiam.
Homens com vestes laranja-vivo voavam em vassouras e entravam e saíam do seu campo de visão, jogando uma bola vermelha.
Harry foi até o livro, apanhou-o e assistiu a um dos bruxos marcar um gol espetacular enfiando a bola por um aro a quinze metros de altura. Então o garoto fechou o livro. Nem mesmo o Quadribol — na opinião de Harry, o melhor esporte do mundo — conseguiria distraí-lo naquele momento. Ele repôs o livro Voando com os Cannonssobre a mesa-de-cabeceira, dirigiu-se à janela e afastou as cortinas para olhar a rua lá embaixo.
A Rua dos Alfeneiros tinha o aspecto exato que uma rua de subúrbio respeitável deveria ter nas primeiras horas de um sábado.
Todas as cortinas estavam fechadas. Até onde Harry pôde ver no escuro, não havia um único ser vivo à vista, nem mesmo um gato.
Contudo... Contudo... Harry voltou inquieto para a cama e se sentou, passando mais uma vez um dedo pela cicatriz. Não era a dor que o incomodava; Harry não era estranho à dor e aos ferimentos.
Uma vez perdera todos os ossos do braço direito e sentira a dor de recuperá-los em uma noite. O mesmo braço fora perfurado pela presa venenosa de uma cobra, pouco tempo depois. Ainda no ano anterior, ele despencara quinze metros da vassoura em que voava. Estava acostumado com acidentes e ferimentos incomuns; eram inevitáveis quando se freqüentava a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts e se tinha um pendor para atrair confusões.
Não, a coisa que estava incomodando Harry era que da última vez que sua cicatriz doera, fora porque Voldemort tinha andado por perto... Mas o bruxo não poderia estar ali, naquela hora... A idéia de Voldemort estar rondando a Rua dos Alfeneiros era absurda, impossível...
Harry parou para escutar com atenção o silêncio à sua volta. Estaria esperando ouvir o rangido de um degrau, o farfalhar de uma capa? Então teve um leve sobressalto, seu primo Duda acabara de soltar um tremendo ronco no quarto ao lado.
Harry deu em si mesmo uma sacudidela imaginária; estava sendo burro; não havia mais ninguém em casa exceto o tio Válter, a tia Petúnia e Duda, e era evidente que eles ainda dormiam, embalados por sonhos tranqüilos e indolores.
Era quando dormiam que Harry mais gostava dos Dursley; não porque não o ajudassem em nada quando estavam acordados. Tio Válter, tia Petúnia e Duda eram os únicos parentes vivos de Harry. Eram trouxas (não eram bruxos) que odiavam e desprezavam qualquer forma de magia, o que significava que Harry era tão bem-vindo em sua casa, quanto uma pelota de mofo. Eles explicaram as longas ausências de Harry nos últimos três anos dizendo a todos que o garoto estudava no Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis. Sabiam muito bem que, como bruxo menor de idade, Harry era proibido de usar a magia fora de Hogwarts, mas não perdiam a mania de culpá-lo por tudo que acontecia de errado na casa. Harry nunca pudera fazer confidências a eles, nem contar nada de sua vida no mundo da magia. A simples idéia de procurá-los quando acordassem para falar que sua cicatriz estava doendo e que estava preocupado com Voldemort era ridícula.
No entanto, era por causa de Voldemort que Harry viera morar com os Dursley, para início de conversa. Se não fosse por aquele bruxo, Harry não teria na testa a cicatriz em forma de raio. Se não fosse por Voldemort, o garoto ainda teria pais...
Harry tinha um ano de idade na noite em que Voldemort — há um século o bruxo das trevas mais poderoso do mundo, um bruxo que fora adquirindo poder continuamente durante onze anos — tinha chegado a sua casa e matado seus pais. Depois, Voldemort brandira sua varinha contra Harry; executara o feitiço que havia liquidado muitos bruxos adultos durante sua ascensão ao poder — e, inacreditavelmente, o feitiço não produzira efeito. Em vez de matar o garotinho, o feitiço se voltara contra o bruxo. Harry sobrevivera marcado apenas por um corte em forma de raio na testa, mas Voldemort fora reduzido a uma coisa quase sem vida. Despojado de seus poderes, a vida quase extinta, ele fugira; o terror em que a comunidade secreta de bruxos vivera tanto tempo se dissipou, os seguidores de Voldemort debandaram, e Harry Potter se tornou famoso.
Harry tivera um choque de bom tamanho ao descobrir, no seu décimo primeiro aniversário, que era bruxo; fora ainda mais desconcertante descobrir que todos no mundo secreto da magia conheciam seu nome. Harry chegara a Hogwarts e deparara com cabeças que se viravam e cochichos que o seguiam aonde fosse. Mas agora já se acostumara com isso. No fim deste verão, ele iria começar o seu quarto ano em Hogwarts; e já estava contando os dias para regressar ao castelo.
Mas faltavam ainda quinze dias para as aulas recomeçarem. Harry tornou a examinar o quarto, desanimado, e seus olhos pousaram nos cartões de aniversário que seus dois melhores amigos tinham lhe mandado no fim de julho.
Que será que diriam se lhes escrevesse para contar que a cicatriz estava doendo?
Na mesma hora a voz de Hermione Granger penetrou sua cabeça, aguda e cheia de pânico. “Sua cicatriz está doendo? Harry, isso é realmente sério... Escreva ao Professor Dumbledore! Vou verificar no meu livro Aflições e Males Comuns na Magia... Quem sabe tem alguma coisa lá sobre cicatrizes produzidas por feitiços...”
E, este seria o conselho de Hermione: vai procurar o diretor de Hogwarts, e, enquanto isso, vai consultando um livro. Harry contemplou pela janela o céu azul, quase negro. Duvidava muito que um livro pudesse ajudá-lo. Que ele soubesse, era a única pessoa que tinha sobrevivido a um feitiço como o de Voldemort; portanto, era pouco provável que encontrasse os seus sintomas descritos em Aflições e Males Comuns na Magia. Quanto a informar ao diretor, Harry não fazia a menor idéia de onde Dumbledore passava as férias de verão. Só por um momento divertiu-se em imaginar Dumbledore, com suas longas barbas prateadas, vestes compridas de bruxo e chapéu cônico, estirado em uma praia qualquer, passando filtro solar no longo nariz torto.
Mas onde quer que Dumbledore estivesse, Harry tinha certeza de que Edwiges seria capaz de encontrá-lo; a coruja de Harry, até aquele dia, jamais deixara de entregar uma carta, mesmo sem endereço. Mas o que iria escrever?
“Prezado Professor Dumbledore. Desculpe-me o incômodo, mas minha cicatriz doeu hoje de manhã. Atenciosamente, Harry Potter.”
Mesmo em sua cabeça as palavras pareciam idiotas.
Então ele tentou imaginar a reação do seu outro melhor amigo, Rony Weasley e, num instante, o rosto sardento, de nariz comprido, do amigo começou a flutuar diante de Harry com uma expressão de atordoamento.
“Sua cicatriz doeu? Mas... Mas Você-Sabe-Quem não pode estar por perto agora, pode? Quero dizer... Você saberia, não saberia? Ele estaria tentando matar você outra vez, não é? Sei não, Harry, vai ver as cicatrizes produzidas por feitiços sempre doem um pouquinho... Vou perguntar ao meu pai...”
O Sr. Weasley era um bruxo diplomado que trabalhava na Seção de Controle do Mau Uso dos Artefatos dos Trouxas, no Ministério da Magia, mas, pelo que Harry soubesse, não tinha qualquer formação específica em feitiços. Em todo o caso, não lhe agradava a idéia de que a família Weasley inteira soubesse que estava assustado por causa de uma dorzinha. A Sra. Weasley se preocuparia mais do que Hermione, e Fred e Jorge, os gêmeos de dezesseis anos, irmãos de Rony, poderiam pensar que Harry estava se acovardando. Os Weasley eram a família de que Harry mais gostava no mundo e ele tinha esperanças que o convidassem para passar uns dias em casa deles uma hora dessas (Rony mencionara alguma coisa sobre uma Copa Mundial de Quadribol), e Harry não queria que sua visita fosse pontuada por perguntas ansiosas sobre sua cicatriz.
O garoto massageou a cicatriz com os nós dos dedos. O que ele realmente queria (e se sentiu quase envergonhado de admitir para si mesmo) era alguém como um pai ou uma mãe para um bruxo adulto a quem pudesse pedir um conselho sem se sentir burro, alguém que gostasse dele, que tivesse tido experiência com artes das trevas...
E então lhe ocorreu a solução. Era tão simples, tão óbvia, que ele nem podia acreditar que tivesse levado tanto tempo para lembrar — Sirius.
Harry saltou da cama, saiu correndo e se sentou à escrivaninha; puxou um pergaminho para perto, molhou a pena de águia no tinteiro, escreveu “Caro Sirius”, e em seguida parou, pensando qual seria a melhor maneira de contar o seu problema, ainda admirado com o fato de não ter pensado nele logo de saída. Mas, por outro lado, talvez não merecesse tanta admiração — afinal, ele só descobrira que Sirius era seu padrinho fazia dois meses.
Havia uma razão simples para a absoluta ausência de Sirius da vida de Harry até aquele momento — o bruxo estivera em Azkaban, a assustadora prisão de bruxos, guardada por dementadores, criaturas malignas que não possuíam olhos, sugavam a alma das pessoas, e tinham ido a Hogwarts procurar Sirius quando ele fugira. Porém, o bruxo era inocente — as mortes pelas quais fora condenado tinham sido cometidas por Rabicho, seguidor de Voldemort, que quase todos ainda pensavam estar morto. Harry, Rony e Hermione sabiam que não; tinham encontrado Rabicho cara a cara no ano anterior, embora apenas o Professor Dumbledore tivesse acreditado na história que eles contaram.
Durante uma gloriosa hora, Harry acreditara que finalmente deixaria a casa dos Dursley, porque Sirius se oferecera para ficar com ele, depois que limpasse o próprio nome. Mas a oportunidade lhe fora roubada — Rabicho escapara antes que pudessem levá-lo ao Ministério da Magia, e Sirius teve de fugir para salvar a vida.
Harry o ajudara a escapar montado em um hipogrifo chamado Bicuço, e desde então Sirius estava foragido. A casa que Harry poderia ter tido, se Rabicho não tivesse desaparecido, o atormentara o verão inteiro. Fora duas vezes mais penoso voltar para os Dursley sabendo que quase se livrara deles para sempre.
Ainda assim, Sirius vinha ajudando Harry, mesmo sem poder estar presente. Graças ao padrinho, Harry agora tinha todo o seu material escolar guardado no quarto. Os Dursley nunca haviam permitido isso; o desejo geral de tornar a vida de Harry a mais infeliz possível, somado ao medo dos seus poderes, levara os tios, nos verões anteriores, a trancar o malão de escola do garoto no armário sob a escada. Mas a atitude dos Dursley mudara desde que descobriram que Harry tinha um perigoso condenado como padrinho — Harry, convenientemente, se esquecera de acrescentar que Sirius era inocente.
O garoto recebera duas cartas de Sirius desde que voltara à Rua dos Alfeneiros. Ambas tinham sido entregues não por corujas (como era costume entre os bruxos), mas por grandes e coloridos pássaros tropicais. Edwiges não aprovara aqueles intrusos espalhafatosos; relutara muito a permitir que eles usassem o seu bebedouro antes de irem embora. Harry, por outro lado, gostara muito das aves; fizeram-no lembrar palmeiras e praias de areia branca e ele desejara que, onde quer que o padrinho estivesse (Sirius nunca dizia, temendo que as cartas fossem interceptadas), que estivesse se divertindo. Por alguma razão, Harry achava difícil imaginar dementadores que sobrevivessem muito tempo sob o sol forte; talvez por isso é que Sirius tivesse rumado para o sul. As cartas dele, que agora estavam escondidas sob a utilíssima tábua solta do soalho, embaixo da cama de Harry, tinham um tom animado e, nas duas, ele lembrava Harry que o chamasse se um dia precisasse. Bem, ele bem que precisava chamar o padrinho agora...
Sua luz de cabeceira parecia estar enfraquecendo a medida que a luz fria e cinzenta que antecede o nascer do sol penetrava devagarzinho no quarto.
Finalmente, quando o sol nasceu, quando as paredes do quarto ficaram douradas e quando ele ouviu sons de gente se mexendo no quarto de tio Válter e tia Petúnia, Harry tirou os pedaços amassados de pergaminho de cima da escrivaninha e releu a carta que escrevera.
“Caro Sirius,
Obrigado por sua última carta, a ave era enorme, quase não pôde passar pela minha janela.
As coisas continuam na mesma por aqui. A dieta de Duda não está dando muito certo. Minha tia o pegou contrabandeando rosquinhas fritas e açucaradas para dentro do quarto, ontem.
Meus tios disseram que vão ter de cortar a mesada dele caso ele continue fazendo isso, então Duda ficou com muita raiva e atirou pela janela o PlayStation.
Isso é uma espécie de computador com muitos jogos. Foi realmente uma burrice porque agora ele não tem nem um Mega-Mutilation parte três para distrair as idéias.
Eu vou bem, principalmente porque os Dursley estão apavorados que você possa aparecer e transformar eles em morcegos se eu pedir.
Mas aconteceu uma coisa estranha, hoje de madrugada. Minha cicatriz doeu outra vez. A última vez que isto aconteceu foi porque Voldemort estava em Hogwarts. Mas acho que ele não pode estar por perto agora, pode? Você sabe se cicatrizes produzidas por um feitiço podem doer até anos depois?
Vou mandar esta carta quando Edwiges voltar, no momento ela saiu para caçar. Diga olá ao Bicuço por mim.
Harry”.
Pensou Harry, parecia boa. Não fazia sentido incluir o sonho, ele não queria que a carta deixasse transparecer que estava muito preocupado. O garoto enrolou o pergaminho e deixou-o em cima da escrivaninha, pronto para quando Edwiges voltasse.
Depois se levantou, se espreguiçou e abriu mais uma vez o guarda-roupa.
Sem olhar para a imagem refletida no espelho, começou a se vestir para ir tomar o café da manhã.