Posted by : Unknown junho 04, 2014

Capítulo 3



Harry copiou essas palavras em três folhas de pergaminho separadas, no instante em que chegou à escrivaninha de seu quarto às escuras. Endereçou a primeira a Sirius, a segunda a Rony e a terceira a Hermione. Sua coruja,
Edwiges, estava fora caçando; a gaiola sobre a escrivaninha estava vazia. O garoto ficou andando para lá e para cá esperando a ave voltar, a cabeça latejando, o cérebro acelerado demais para adormecer, mesmo que seus olhos ardessem e cocassem de cansaço. Suas costas doíam do esforço de carregar Duda para casa, e os dois galos em sua cabeça, onde a janela e o primo haviam batido, estavam latejando com muita intensidade.
Ele andava para frente e para trás, roído de raiva e frustração, rilhando os dentes e fechando os punhos, lançando olhares furiosos para o céu vazio, exceto pelas estrelas, todas as vezes que passava pela janela. Os dementadores enviados para apanhá-lo, a Sra. Figg e Mundungo Fletcher seguindo-o em segredo, depois a suspensão de Hogwarts e a audiência do Ministério da Magia — e ainda assim ninguém lhe contava o que estava acontecendo.
E o quê, o que queria dizer aquele berrador? Que voz horrível era aquela que ecoou, de forma tão ameaçadora, pela cozinha? Por que ele continuava preso ali sem informações? Por que todos o estavam tratando como uma criança malcomportada?Não faça mais mágicas, não saia de casa...
Deu um pontapé no malão da escola ao passar, mas, ao invés de aliviar a raiva, ele ficou pior, pois agora sentia uma dor aguda no dedão, para somar às outras no resto do corpo.
Ao passar mancando pela janela, Edwiges entrou farfalhando suavemente as asas, como um fantasminha.
— Já não era sem tempo! — rosnou Harry, quando a ave pousou com leveza em cima da gaiola. — Pode largar isso aí, tenho trabalho para você!
Os grandes olhos redondos e âmbar da coruja o miraram, com uma expressão de censura, por cima do sapo morto que trazia ao bico.
— Vem cá — disse-lhe o dono, apanhando os três rolinhos de pergaminho e uma correia de couro para amarrá-los à perna escamosa da ave. — Leve estas mensagens diretamente a Sirius, Rony e Hermione e não volte aqui sem respostas longas e completas. Se for preciso, não pare de dar bicadas neles até escreverem respostas de tamanho decente. Entendeu?
Edwiges soltou um pio abafado, seu bico ainda cheio de sapo.
— Então vai andando — falou Harry.
Ela partiu imediatamente. No momento em que se foi, Harry se atirou na cama sem se despir e ficou olhando para o teto. Além de todos os outros sentimentos infelizes, ele agora sentia remorso por ter sido tão rabugento com Edwiges; era a única amiga que tinha no número quatro da rua dos Alfeneiros. Mas ele a compensaria quando voltasse com respostas de Sirius, Rony e Hermione.
Seus amigos com certeza iriam responder depressa; não podiam ignorar um ataque de dementadores. Ele provavelmente acordaria no dia seguinte e encontraria três grossas cartas recheadas de solidariedade e planos para sua imediata remoção para A Toca. E com essa idéia reconfortante, o sono o venceu, sufocando outros pensamentos.
Mas Edwiges não regressou na manhã seguinte. Harry passou o dia no quarto, saindo apenas para ir ao banheiro. Três vezes naquele dia, tia Petúnia empurrou comida para dentro do quarto pela aba que tio Valter instalara três verões passados. Todas as vezes que Harry a ouvia se aproximar, tentava interrogá-la sobre o berrador, mas teria sido melhor interrogar a maçaneta, porque não obtinha resposta alguma. Afora isso, os Dursley se mantiveram bem longe do seu quarto. Harry não via sentido em impor a eles sua companhia; mais uma briga não resolveria nada, exceto, talvez, deixá-lo tão aborrecido que acabaria apelando para a magia proibida.
As coisas continuaram nesse ritmo durante três dias inteiros. Harry sentia-se invadido por uma energia excessiva que o impedia de se concentrar em qualquer coisa, momentos em que caminhava pelo quarto furioso com todo o mundo, por deixarem-no remoendo seus problemas sozinho; essa energia se alternava com uma letargia tão absoluta que era capaz de ficar deitado na cama uma hora inteira, olhando atordoado para o teto, sofrendo só de pensar, apavorado, na audiência no Ministério.
E se o condenassem? E se ele fosse expulso e sua varinha partida ao meio? Que iria fazer, aonde iria? Não poderia voltar a viver o tempo todo com os Dursley, não agora que conhecia o outro mundo, aquele ao qual pertencia. Será que poderia ir morar com Sirius, como o padrinho oferecera havia um ano, antes de ser forçado a fugir do Ministério? Será que dariam permissão a Harry para morar sozinho, sendo ainda menor de idade? Ou será que decidiriam por ele o local aonde ir? Será que sua infração do Estatuto Internacional de Sigilo fora suficientemente grave para mandá-lo a uma cela em Azkaban? Sempre que tal pensamento lhe ocorria, Harry invariavelmente se levantava da cama e recomeçava a caminhar.
Na quarta noite depois da partida de Edwiges, o garoto estava deitado em uma de suas fases de apatia, mirando o teto, a mente exausta e vazia, quando seu tio entrou no quarto. Harry virou lentamente a cabeça e olhou para ele.
Valter estava usando seu melhor terno e tinha uma expressão de enorme presunção.
— Vamos sair — anunciou.
— Como disse?
— Nós, isto é, sua tia, Duda e eu, vamos sair.
— Ótimo — respondeu Harry inexpressivamente, voltando a mirar o teto.
— Você não deverá sair do seu quarto enquanto estivermos fora.
— O.K.
— Você não deverá ligar a televisão, nem o som, nem nada que nos pertence.
— Certo.
— Você não deverá roubar comida da geladeira.
— O.k.
— Vou trancar sua porta.
— Pode trancar.
Tio Valter encarou Harry, abertamente desconfiado dessa falta de oposição, em seguida saiu pisando forte e fechou a porta ao passar. Harry ouviu a chave girar na fechadura e os passos do tio descerem pesadamente a escada. Alguns minutos depois, ouviu as portas do carro baterem, o ruído de um motor e o som inconfundível de um carro deixando rapidamente a entrada da garagem.
Harry ficou indiferente à saída dos Dursley. Tanto fazia os tios estarem ou não em casa. Não conseguia sequer dirigir suas energias para se levantar e acender a luz. O quarto ia escurecendo depressa, mas ele continuava deitado, apurando os ouvidos para escutar os ruídos da noite pela janela que mantinha o tempo todo aberta, esperando o momento abençoado em que Edwiges voltaria.
A casa vazia rangia por inteiro. Os canos de água gargarejavam.
Harry permaneceu nessa espécie de estupor, sem pensar em nada, imerso em infelicidade.
Então, com toda a clareza, ele ouviu um estrondo lá embaixo, na cozinha. Sentou-se imediatamente, escutando com atenção. Os Dursley não poderiam ter voltado, era cedo demais, e, de todo o jeito, ele não ouvira barulho de carro. Fez-se silêncio por alguns segundos, em seguida vozes.
Ladrões, pensou, deslizando para fora da cama e ficando em pé — mas, uma fração de segundo depois, lhe ocorreu que ladrões falariam em voz baixa, e quem estava andando pela cozinha certamente não estava preocupado com isso.
Ele apanhou a varinha sobre a mesa-de-cabeceira e ficou de frente para a porta do quarto, escutando com a máxima atenção. No momento seguinte, Harry se sobressaltou ao ouvir um forte estalo e ver sua porta se escancarar.
O garoto ficou parado, imóvel, olhando através da porta aberta para o patamar escuro, fazendo força para ouvir, mas não houve nenhum outro som.
Ele hesitou um instante, depois saiu rápida e silenciosamente do quarto e foi até a escada.
Seu coração parecia ter disparado para a garganta. Havia gente parada no hall escuro embaixo, cujas silhuetas a luz da rua recortava ao entrar pelo vidro da porta; oito ou nove pessoas, todas, até onde Harry conseguia ver, olhando para cima.
— Baixe a varinha, garoto, antes que você arranque os olhos de alguém — disse uma voz baixa e rouca.
O coração de Harry bateu descontrolado. Reconhecia aquela voz, mas não baixou a varinha.
— Professor Moody? — perguntou hesitante.
— Não sei bem quanto a "Professor" — rosnou a voz —, nunca cheguei a ensinar muito tempo, não é mesmo? Vem até aqui, queremos ver você direito.
Harry baixou ligeiramente a varinha, mas não afrouxou a mão, nem se mexeu.
Tinha muito boas razões para desconfiar. Recentemente passara nove meses em companhia de alguém que achava que era Olho-Tonto Moody e acabou descobrindo que não era ele, mas um impostor, que ainda por cima tentara matá-lo antes de ser desmascarado. Mas, antes que pudesse decidir o que fazer, uma segunda voz, ligeiramente rouca, flutuou até o alto da escada.
— Tudo bem, Harry. Viemos buscar você.
O coração do garoto deu um salto. Reconheceu aquela voz também, embora não a ouvisse havia mais de um ano.
— Professor Lupin? — exclamou incrédulo. — É o senhor?
— Por que estamos todos parados no escuro? — disse uma terceira voz completamente desconhecida, de uma mulher. — lumus.
A ponta de uma varinha acendeu, iluminando o hall com luz mágica. Harry piscou. As pessoas embaixo estavam amontoadas ao pé da escada, olhando-o com atenção, algumas até esticando o pescoço para vê-lo melhor.
Remo Lupin era quem estava mais próximo de Harry. Embora ainda jovem, Lupin parecia cansado e bem doente; tinha mais cabelos brancos do que quando o garoto se despedira dele, e suas vestes estavam mais remendadas e gastas que nunca. Ainda assim, ele olhava para Harry com um grande sorriso, que o garoto tentou retribuir apesar do seu estado de choque.
— Ahhh, ele é igualzinho ao que eu imaginei — disse a bruxa que segurava no alto a varinha acesa. Parecia a mais jovem do grupo; tinha um rosto pálido em feitio de coração, olhos escuros e cintilantes e cabelos curtos e espetados, roxo berrante. — E aí, beleza, Harry?
— É, vejo o que quis dizer, Remo — disse um bruxo negro e careca parado no círculo mais externo do grupo; tinha uma voz grave e lenta e usava um único brinco de ouro na orelha —, ele é a cara do Tiago.
— Exceto pelos olhos — disse a voz asmática de um bruxo de cabelos prateados mais ao fundo. — São os olhos de Lílian.
Olho-Tonto Moody, que possuía longos cabelos grisalhos e um nariz a que faltava um pedaço, observava Harry, desconfiado, apertando os olhos díspares. Um era muito pequeno, escuro e arisco, o outro, grande, redondo, azul elétrico — o olho mágico que podia ver através de paredes, portas e da nuca do próprio Moody.
— Você tem certeza que é ele, Lupin? Seria uma grossa mancada se levássemos um Comensal da Morte fazendo-se passar por Harry. Devíamos perguntar a ele alguma coisa que só o verdadeiro Potter saiba. A não ser que alguém tenha trazido um pouco de soro da verdade.
— Harry, que forma assume o seu Patrono? — perguntou Lupin.
— De veado — respondeu Harry, nervoso.
— É ele mesmo, Olho-Tonto — confirmou Lupin.
Muito consciente de que todos continuavam de olhos fixos nele, Harry desceu as escadas, guardando a varinha no bolso traseiro das jeans enquanto descia.
— Não guarde a varinha aí, garoto! — berrou Moody. — E se pegar fogo? Bruxos mais sabidos que você já perderam as nádegas, sabe!
— Quem é que você ouviu dizer que perdeu a nádega? — perguntou interessada a bruxa de cabelos roxos.
— Não se preocupe com isso, e você guarde a varinha longe do bolso traseiro! — vociferou Olho-Tonto. — Medidas de segurança elementares para o uso da varinha, ninguém se preocupa mais com elas. — E saiu mancando para a cozinha. — E estou vendo você — disse, irritado, quando a mulher girou os olhos para o teto.
Lupin estendeu a mão e apertou a de Harry.
— Como é que você tem andado? — perguntou, examinando Harry atentamente.
— Ó-ótimo...
Harry mal podia acreditar que aquilo estivesse mesmo acontecendo. Quatro semanas sem nada, nem o menor indício de um plano para removê-lo da Rua dos Alfeneiros e, de repente, um bando de bruxos inesperados em sua casa como se isso já estivesse combinado há séculos. O garoto correu os olhos pelas pessoas que rodeavam Lupin; todos continuavam a observá-lo com avidez.
Sentia-se muito consciente de que não penteava os cabelos havia quatro dias.
— Eu... vocês estão realmente com sorte que os Dursley tenham saído... — murmurou.
— Sorte nada! — disse a mulher de cabelos roxos. — Fui eu que os tirei do caminho. Mandei uma carta pelo correio dos trouxas dizendo que estavam entre os finalistas doConcurso do Gramado Mais Bem Cuidado da Grã-
Bretanha. Eles estão a caminho da festa de entrega do prêmio neste momento... ou pensam que estão.
Harry teve uma visão passageira da cara do tio Válter quando descobrisse que não havia concurso algum.
— Vamos embora, não vamos? — perguntou ele. — Logo?
— Quase imediatamente — disse Lupin —, vamos só aguardar o sinal verde.
— Aonde vamos? Para A Toca? — perguntou Harry, esperançoso.
— Não, não para A Toca — respondeu Lupin, conduzindo Harry para a cozinha; o grupinho de bruxos os acompanhou, ainda examinando o garoto, cheios de curiosidade. — Arriscado demais. Montamos o quartel-general em um lugar difícil de encontrar. Levou algum tempo...
Olho-Tonto Moody agora estava sentado à mesa da cozinha, tomando goles de um frasco de bolso, seu olho mágico girava em todas as direções, apreciando os muitos aparelhos que os Dursley usavam para poupar trabalho.
— Este é o Alastor Moody, Harry — continuou Lupin, apontando para o bruxo.
— É, eu sei — respondeu Harry pouco à vontade. Dava uma sensação esquisita ser apresentado a alguém que ele achava que conhecia havia um ano.
— E essa é Ninfadora...
— Não me chame de Ninfadora — pediu a jovem bruxa com um arrepio —, sou Tonks.
— Ninfadora Tonks, que prefere ser conhecida apenas pelo sobrenome — concluiu Lupin.
— Você também iria preferir se a tonta da sua mãe tivesse lhe dado o nome de
Ninfadora — murmurou Tonks.
— E esse é Quim Shacklebolt — disse ele indicando o bruxo negro e alto, que fez uma reverência. — Elifas Doge. — O bruxo de voz asmática fez um aceno com a cabeça. — Dédalo Diggle...
— Já nos encontramos antes — esganiçou-se o excitável Diggle, deixando cair a cartola roxa.
— Emelina Vance. — Uma bruxa de ar imponente acenou a cabeça coberta por um xale verde-água. — Estúrgio Podmore. — Um bruxo de queixo quadrado e chapéu cor de palha deu uma piscadela.
— E Héstia Jones. — Perto da torradeira, uma bruxa, de faces coradas e cabelos negros, deu um adeusinho.
Harry cumprimentou com um aceno de cabeça cada bruxo, à medida que foram apresentados. Desejou que olhassem para outra coisa ou pessoa que não fosse ele; era como se repentinamente o tivessem feito subir a um palco. Ficou imaginando também por que havia tantos bruxos presentes.
— Um número surpreendente de pessoas se apresentaram como voluntárias para vir buscá-lo — disse Lupin, como se tivesse lido os pensamentos de Harry; os cantos de sua boca mexeram ligeiramente.
— Ah, foi, quanto mais melhor — disse Moody sombriamente. — Somos a sua guarda, Potter.
— Estamos só esperando o sinal de que podemos partir sem perigo — disse Lupin, espiando pela janela da cozinha. — Temos uns quinze minutos.
— Muito limpos, não são, esses trouxas? — comentou a bruxa chamada Tonks, que corria os olhos pela cozinha com grande interesse.
— Meu pai nasceu trouxa e é um velho porcalhão. Suponho que isto varie como acontece entre os bruxos?
— Hum... é — respondeu Harry. — Escute... — começou virando-se para Lupin — que é que está acontecendo, não recebi uma palavra de ninguém, que é que o Vol...?
Vários bruxos soltaram estranhos assobios; Dédalo Diggle deixou cair a cartola outra vez e Moody vociferou:
— Cale-se.
— Quê! — exclamou Harry.
— Não vamos falar nada aqui, é arriscado demais — disse Moody virando o olho normal para o garoto. Seu olho mágico continuava focalizando o teto. — Pombas — acrescentou zangado, levando uma das mãos ao olho mágico. — Não pára de prender desde que aquele desgraçado o usou.
E com um ruído grosseiro de arroto, bem parecido com o que se ouve quando se puxa um desentupidor de pia, ele tirou o olho.
— Olho-Tonto, você sabe que isso é nojento, não sabe? — falou Tonks em tom de conversa.
— Me arranje um copo d'água, por favor, Harry — pediu Moody. O garoto foi até a lavadora de louça, apanhou um copo limpo e encheu-o de água da torneira, ainda seguido pelos olhares dos bruxos. Essa incansável observação estava começando a irritá-lo.
— Saúde — saudou Moody, quando Harry lhe entregou o copo. O bruxo pôs dentro o olho mágico e empurrou-o com o dedo para cima e para baixo; o olho girou em volta do copo, encarando os bruxos, um a um. — Quero ter uma visibilidade de trezentos e sessenta graus na viagem de volta.
— Como vamos chegar... a esse lugar a que a gente está indo? — perguntou Harry.
— Vassouras — disse Lupin. — É o único jeito. Você é jovem demais para aparatar, eles devem estar vigiando a rede de Flu e vai nos custar mais do que a nossa vida montar uma chave de portal sem autorização.
— Remo contou que você é um bom piloto — disse Quim Shacklebolt com sua voz ressonante.
— E excelente — confirmou Lupin, consultando o relógio. — Em todo o caso, é melhor você ir fazer a mala, Harry, queremos estar prontos para partir quando recebermos o sinal.
— Vou ajudá-lo — ofereceu-se Tonks, animada.
Ela acompanhou Harry de volta ao hall e subiu a escada, olhando para tudo com muita curiosidade e interesse.
— Que lugar engraçado — comentou. — É um pouco limpo demais, entende o que quero dizer? Um pouco estranho. Ah, agora está melhor — acrescentou quando entraram no quarto de Harry e acenderam a luz.
O quarto do garoto era certamente muito mais desarrumado que o resto da casa. Confinado nele havia quatro dias, de muito mau humor, Harry não se dera o trabalho de arrumá-lo. A maioria dos livros que possuía estava espalhada pelo chão, onde ele tentara se distrair com cada um deles e os jogara para o lado; a gaiola de Edwiges precisava ser limpa, e estava começando a feder; e seu malão estava aberto, deixando à mostra uma mistura confusa de roupas de trouxa e vestes de bruxo que haviam transbordado por todo o chão à volta.
Harry começou a recolher os livros e a atirá-los apressadamente no malão.
Tonks parou diante do armário para olhar criticamente a própria imagem no espelho do lado interno da porta.
— Sabe, acho que roxo não é bem a minha cor — comentou, pensativa, puxando uma mecha dos cabelos espetados. — Você não acha que me dá um ar meio doentio?
— Hum — começou Harry, espiando a bruxa por cima do seu livro Os times de quadribol da Grã-Bretanha e da Irlanda.
— É, dá — concluiu definitivamente Tonks. Ela apertou os olhos em uma expressão preocupada, como se estivesse tentando se lembrar de alguma coisa.
Um segundo depois, seus cabelos tinham mudado para rosa-chiclete.
— Como é que você faz isso? — perguntou Harry, boquiaberto, quando ela reabriu os olhos.
— Sou metamorfomaga — respondeu ela, voltando a olhar para o espelho e virando a cabeça para poder ver o cabelo de todos os lados. — O que significa que posso mudar minha aparência à vontade — acrescentou ao ver a expressão intrigada de Harry no espelho às suas costas. — Nasci assim.
Recebia as melhores notas em Esconderijos e Disfarces durante o treinamento para auror, sem nem precisar estudar, foi muito legal.
— Você é auror? — perguntou Harry, impressionado. Ser caçador de bruxos das trevas era a única carreira em que ele pensara seguir quando terminasse Hogwarts.
— Sou — confirmou Tonks, com orgulho. — Quim também é, mas é mais graduado que eu. Eu só me formei há um ano. Quase levei bomba em
Vigilância e Rastreamento. Sou muito trapalhona, você me ouviu quebrar aquele prato quando chegamos lá embaixo?
— Pode-se aprender a ser metamorfomago? — perguntou Harry, se erguendo e esquecendo completamente que estava fazendo a mala.
Tonks deu uma risadinha abafada.
— Aposto que você até gostaria de esconder essa cicatriz, às vezes, hein? Seus olhos focalizaram a cicatriz em forma de raio na testa do garoto.
— Gostaria — murmurou Harry virando as costas. Não gostava de gente olhando para a cicatriz.
— Bom, acho que você vai ter de aprender pelo método difícil. Os metamorfomagos são realmente raros, a gente nasce com o dom, não o adquire. A maioria dos bruxos precisa de uma varinha ou de poções para mudar a aparência. Mas temos de ir andando, Harry, devíamos estar fazendo as malas — acrescentou ela, se sentindo culpada ao verificar a bagunça que havia no chão.
— Ah... é — concordou o garoto, catando mais alguns livros.
— Não seja burro, vai ser muito mais rápido se eu... Fazer malas! — exclamou a bruxa, agitando a varinha com um movimento longo e amplo que abarcou o chão.
Livros, roupas, telescópio e balança, tudo levantou vôo e se precipitou rápida e desordenadamente para dentro do malão.
— Não ficou muito arrumado — disse Tonks, se aproximando do malão e espiando a confusão ali dentro. — Minha mãe tem um jeito para fazer as coisas entrarem arrumadinhas — e até consegue que as meias se enrolem sozinhas... mas nunca aprendi como é que ela faz... é uma espécie de sacudida rápida com a varinha. — Ela experimentou esperançosa.
Uma das meias de Harry começou a se ondular lentamente, mas tornou a se achatar em cima da montoeira existente.
— Ah, deixa pra lá — disse Tonks, fechando a tampa do malão —, pelo menos está tudo dentro. Isso aí está pedindo uma limpezinha, também. — Ela apontou para a gaiola de Edwiges. — Limpar. — Penas e titicas desapareceram.
— Bom, agora está um pouquinho melhor — nunca peguei o jeito desses feitiços domésticos. Certo... está tudo aí? Caldeirão? Vassoura? Uau! Uma
Firebolt?
Os olhos da bruxa se arregalaram ao pousar sobre a vassoura na mão direita de Harry. Era o orgulho e a alegria do garoto, um presente de Sirius, uma vassoura de categoria internacional.
— E eu ainda vôo numa Comet 260 — comentou Tonks, com inveja. — Ah, deixa pra lá... a varinha continua no bolso da jeans? As duas nádegas continuam inteiras? O.k., vamos. Locomotor malão.
O malão de Harry ergueu-se alguns centímetros do chão. Segurando a varinha como se fosse a batuta de um maestro, Tonks fez o objeto atravessar o quarto e sair pela porta à frente deles, a gaiola de Edwiges na mão esquerda. Harry desceu a escada atrás da bruxa levando sua vassoura.
De volta à cozinha, Moody recolocara o olho, que girava tão rápido depois de limpo que Harry se sentiu enjoado só de olhar. Quim Shacklebolt e Estúrgio Podmore examinavam o microondas e Héstia Jones dava risadas com um descascador de batatas que encontrara ao examinar as gavetas. Lupin estava endereçando uma carta aos Dursley.
— Excelente — exclamou ao ver Tonks e Harry entrarem. — Temos mais ou menos um minuto, acho. Talvez fosse bom irmos para o jardim e aguardarmos prontos. Harry, deixei uma carta avisando aos seus tios para não se preocuparem...
— Eles não vão se preocupar — respondeu Harry.
—... que você não corre perigo...
— Assim eles vão ficar deprimidos.
—... e que você os verá no próximo verão.
— Preciso?
Lupin sorriu, mas não respondeu.
— Venha aqui, garoto — disse Moody com rispidez, acenando com a varinha para Harry se aproximar. — Preciso desiludir você.
— O senhor precisa o quê? — perguntou o garoto, nervoso.
— Feitiço da Desilusão — explicou Moody erguendo a varinha. — Lupin disse que você tem uma Capa da Invisibilidade, mas ela não vai cobri-lo o tempo todo que estiver voando; o feitiço vai disfarçar você melhor. Agora...
O bruxo deu uma pancada forte no cocuruto de Harry e ele teve a curiosa sensação de que Moody acabara de quebrar um ovo ali; um filete gelado pareceu escorrer pelo seu corpo a partir do ponto em que a varinha batera.
— Bem bom, Olho-Tonto — disse Tonks em tom de admiração, olhando para a cintura de Harry.
O garoto baixou os olhos para seu corpo, ou melhor, para o que fora seu corpo, porque não parecia mais o dele. Não estava invisível; mas simplesmente assumira a cor e a textura exatas do eletrodoméstico às suas costas. Ele parecia ter se transformado em um camaleão humano.
— Vamos — disse Moody, destrancando a porta dos fundos com a varinha. Todos saíram para o belo gramado do jardim de tio Válter.
— Noite clara — resmungou Moody, seu olho mágico esquadrinhando o céu.
— Teria sido melhor se houvesse umas nuvens. Certo, você... — falou o bruxo para Harry com rispidez —, vamos voar em formação cerrada. Tonks irá à sua frente, mantenha-se colado à cauda dela. Lupin vai cobrir você por baixo. Eu vou atrás. O resto ficará circulando em volta. Não saiam da formação para nada, entenderam? Se um de nós for morto...
— E isso pode acontecer? — perguntou Harry apreensivo, mas Moody não lhe deu atenção.
—... os outros continuarão voando, não parem, não dispersem. Se nos eliminarem e você sobreviver, Harry, há uma guarda recuada de prontidão para assumir, continue a voar para oeste e ela irá se reunir a você.
— Pare de ser tão animador, Olho-Tonto, ele vai pensar que não estamos levando isto a sério — disse Tonks, enquanto prendia o malão de Harry e a gaiola de Edwiges aos arreios que trazia pendurados à vassoura.
— Estou só contando ao garoto qual é o plano — rosnou Moody. — Nossa missão é entregá-lo ileso na sede, e se morrermos na tentativa...
— Ninguém vai morrer — disse Quim Shacklebolt com sua voz grave e calmante.
— Montem as vassouras, esse é o primeiro sinal! — comandou Lupin, apontando para o céu.
No alto, a uma grande distância, uma chuva de faíscas vermelhas brilhara entre as estrelas. Harry identificou-as imediatamente como faíscas produzidas por uma varinha. Passou a perna direita por cima da Firebolt, segurou com firmeza a empunhadura e sentiu-a vibrar muito de leve, como se estivesse tão ansiosa quanto ele para ganhar novamente os ares.
— Segundo sinal, vamos! — disse Lupin em voz alta ao ver mais faíscas, desta vez verdes, explodirem lá no alto.
Harry deu um forte impulso. O ar fresco da noite passava veloz por seus cabelos enquanto os jardins cuidados da rua dos Alfeneiros iam ficando para trás, reduzidos a uma colcha de retalhos verde-escuros e pretos, e todos os pensamentos sobre a audiência no Ministério desapareceram de sua mente como se uma lufada de vento os tivesse varrido dali. Ele teve a sensação de que seu coração ia explodir de prazer; estava voando outra vez, voando para longe da rua dos Alfeneiros, como passara imaginando o verão inteiro, estava voltando para casa... por uns poucos e gloriosos minutos, todos os seus problemas pareceram ir recuando até desaparecer, insignificantes no vasto céu estrelado.
— Tudo à esquerda, tudo à esquerda, tem um trouxa olhando para o céu! — gritou Moody às costas de Harry. Tonks deu uma guinada e o garoto a acompanhou, observando o malão balançar violentamente sob a vassoura da bruxa. — Precisamos ganhar mais altura... subam mais quatrocentos metros!
Com o frio e a velocidade da subida, os olhos de Harry se encheram de água; ele não conseguia ver nada no solo, exceto os minúsculos pontinhos de luz que eram os faróis dos carros e os lampiões. Duas luzinhas talvez pertencessem ao carro do tio Válter... neste momento, os Dursley estariam voltando para a casa vazia, enfurecidos por causa do concurso inexistente... e Harry soltou uma gargalhada só de pensar na cena, embora sua voz fosse abafada pela agitação das vestes dos bruxos, o rangido das correias que prendiam o malão e a gaiola, e o ruído do vento ao passar em grande velocidade por seus ouvidos. Ele não se sentia vivo assim fazia um mês, nem tão feliz.
— Rumar para o sul! — gritou Olho-Tonto. — Cidade à frente! Eles viraram para a direita a fim de evitar sobrevoar a cintilante teia de luzes lá embaixo.
— Rumar para sudeste e continuar subindo, há umas nuvens baixas à frente que podem nos esconder! — gritou Moody.
— Não vamos entrar em nuvens! — gritou Tonks zangada. — Vamos nos encharcar, Olho-Tonto!
Harry ficou aliviado de ouvi-la reclamar; suas mãos estavam ficando dormentes na empunhadura da vassoura. Desejou ter se lembrado de vestir um casaco; estava começando a tremer de frio.
Eles alteravam o curso a intervalos, segundo as instruções de Olho-Tonto. Harry conservava os olhos semicerrados para se proteger do vento gelado que começava a fazer suas orelhas arderem; só se lembrava de sentir tanto frio assim montando uma vassoura uma vez, na vida, durante uma partida de quadribol contra Lufa-Lufa, no terceiro ano de escola, que se realizara debaixo de um temporal. A guarda voava ao redor dele, continuamente, como gigantescas aves de rapina. Harry perdeu a noção de tempo. Ficou imaginando quantos minutos fazia que estavam voando, parecia no mínimo uma hora.
— Dobrar para sudeste! — berrou Moody. — Queremos evitar a estrada!
Harry agora estava tão congelado que pensou, saudoso, no aconchego seco do interior dos carros que passavam lá embaixo, depois, ainda mais saudoso, numa viagem de Flu; talvez fosse desconfortável ficar rodopiando por lareiras, mas pelo menos nas chamas era quentinho... Quim rodeou-o em um mergulho, a careca e o brinco reluzindo ao luar... agora Emelina Vance apareceu à sua direita, a varinha na mão, a cabeça virando para a esquerda e a direita... depois ela também mergulhou por cima dele e foi substituída por Estúrgio Podmore...
— Devíamos retroceder um pouco, para nos certificar de que não estamos sendo seguidos! — gritou Moody.
— VOCÊ FICOU DOIDO, OLHO-TONTO? — berrou Tonks à frente. — Estamos congelados nas vassouras! Se continuarmos a nos desviar da rota, só vamos chegar na semana que vem! Além do mais, já estamos quase chegando!
— Hora de iniciar a descida! — ouviu-se a voz de Lupin. — Siga Tonks, Harry!
O garoto seguiu a bruxa em um mergulho. Estavam rumando para a maior coleção de luzes que ele já vira, uma vasta massa irregular que se entrecruzava, onde brilhavam linhas e redes entremeadas por espaços muito negros.
Continuaram voando cada vez mais baixo, até Harry poder distinguir os faróis de cada carro, os lampiões, as chaminés e as antenas de televisão. Ele queria muito chegar ao chão, embora tivesse certeza de que alguém precisaria descongelá-lo da vassoura.
— Aqui vamos nós! — avisou Tonks, e alguns segundos depois ela pousou.
Harry tocou o solo logo em seguida e desmontou em um trecho de grama alta, no centro de uma pequena praça. Tonks já estava desafivelando o malão.
Tiritando de frio, o garoto olhou para os lados. Ao seu redor, as fachadas das casas cobertas de fuligem não pareciam convidativas; algumas tinham janelas quebradas que refletiam opacamente a luz dos lampiões, a pintura estava descascando em muitas das portas e havia montes de lixo na entrada das casas.
— Onde estamos? — perguntou Harry, mas Lupin disse baixinho:
— Em um instante.
Moody vasculhava sua capa, as mãos recurvadas insensíveis de frio.
— Achei — murmurou, erguendo bem no alto um objeto que parecia um isqueiro de prata e acionando-o.
A luz do lampião mais próximo apagou; ele não parou de acionar o isqueiro até todas as lâmpadas da praça estarem apagadas, restando apenas a luz de uma janela, protegida por cortinas, e a lua crescente no céu.
— Pedi-o emprestado a Dumbledore — grunhiu Moody, embolsando o desiluminador. — Isto cuidará de qualquer trouxa que esteja espiando pela janela, entende? Agora vamos logo.
Ele tomou Harry pelo braço e o conduziu para longe do gramado, atravessou a rua e subiu a calçada; Lupin e Tonks o seguiram, carregando o malão do garoto, o restante da guarda, empunhava suas varinhas, flanqueando os quatro.
De uma janela do primeiro andar próxima, vinha um som abafado de música.
Um cheiro acre de lixo podre desprendia-se de uma pilha de sacas estufadas de lixo logo à entrada do portão quebrado.
— Tome — murmurou Moody, empurrando um pedaço de pergaminho em direção à mão desiludida de Harry, e aproximou sua varinha acesa para iluminar o que estava escrito. — Leia depressa e decore.
Harry olhou para o pedaço de pergaminho. A caligrafia fina lhe era vagamente familiar. Ele leu:

A sede da Ordem da Fênix encontra-se no largo Grimmauld, número doze, Londres.

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