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Unknown
junho 04, 2014
Capítulo 1
Privados das atividades de lavar carros e cortar gramados, os habitantes da rua dos Alfeneiros haviam se recolhido à sombra de suas casas frescas, as janelas escancaradas na esperança de atrair uma brisa inexistente. A única pessoa do lado de fora era um adolescente deitado de costas em um canteiro de flores à frente do número quatro.
Era um garoto magricela, de cabelos pretos, a aparência macilenta e meio doentia de alguém que cresceu muito em pouco tempo. Suas jeans estavam rotas e sujas, a camiseta larga e desbotada, e as solas dos tênis se soltavam da parte de cima. A aparência de Harry Potter não o recomendava aos vizinhos, que eram do tipo que achava que devia haver uma punição legal para sujeira e desleixo, mas como ele se escondera atrás de uma repolhuda hortênsia, esta noite ele estava invisível aos que passavam. De fato, a única maneira de localizá-lo era se o tio Válter ou a tia Petúnia metessem a cabeça pela janela da sala de estar e olhassem diretamente para o canteiro embaixo.
No todo, Harry achava que devia receber parabéns pela idéia de se esconder ali. Não estava, talvez, muito confortável, deitado na terra quente e dura, mas, por outro lado, ninguém estava olhando para ele, rangendo os dentes tão alto que o impedia de ouvir o noticiário, nem disparando perguntas incômodas, como acontecera todas as vezes em que tentou se sentar na sala de estar para ver televisão com os tios.
Quase como se tais pensamentos tivessem entrado pela janela aberta, repentinamente Válter Dursley, o tio de Harry, falou:
— Fico contente de ver que o garoto parou de se meter aqui. Por falar nisso, onde será que ele anda?
— Não sei — respondeu tia Petúnia, desinteressada. — Aqui em casa não está.
O tio grunhiu.
— Assistir ao noticiário... — comentou com severidade. — Gostaria de saber o que é que ele está realmente aprontando. Como se um garoto normal se interessasse por noticiário; Duda não tem a mínima idéia do que está acontecendo; duvido que saiba quem é o primeiro-ministro! Em todo o caso, não há nada sobre gente da laia dele nonosso noticiário...
— Válter, psiu! — alertou tia Petúnia. — A janela está aberta!
— Ah... é... desculpe, querida.
Os Dursley se calaram. Harry ouviu o anúncio de um cereal com frutas para o café da manhã enquanto observava a Sra. Figg, uma velhota gagá que adorava gatos e morava ali no bairro, na Alameda das Glicínias, que ia passando vagarosamente. Ela franzia a testa e resmungava baixinho. Harry ficou muito feliz de estar escondido atrás do arbusto, porque ultimamente a velhota dera para convidá-lo para tomar chá todas as vezes que o encontrava na rua. Ela acabara de virar a esquina e desaparecer de vista quando a voz do tio Válter tornou a soar pela janela aberta.
— O Dudoca vai tomar chá fora?
— Na casa dos Polkiss — respondeu tia Petúnia com carinho. — Ele tem tantos amiguinhos, é tão popular...
Harry mal conseguiu abafar o riso. Os Dursley eram espantosamente burros quando se tratava do filho. Engoliam todas as mentiras capengas de Duda de que estava tomando chá com alguém da turma a cada noite das férias. Harry sabia perfeitamente bem que o primo não estivera tomando chá em parte alguma; ele e sua turma passavam as noites vandalizando o parque infantil, fumando nas esquinas e atirando pedras nos carros e crianças que passavam.
Harry os vira durante seus passeios noturnos por Little Whinging; ele próprio passara a maioria das noites das férias perambulando pelas ruas, recolhendo jornais das lixeiras em seu trajeto.
Os primeiros acordes da música que anunciava o telejornal das sete horas chegaram aos ouvidos de Harry e seu estômago revirou. Talvez aquela noite
— depois de um mês de espera — fosse a noite.
"Um número recorde de turistas impedidos de prosseguir viagem lota os aeroportos nessa segunda semana de greve dos carregadores espanhóis..."
— Se fosse eu, mandava essa gente dormir a sesta pelo resto da vida — rosnou tio Válter mal o locutor terminara a frase, mas não fez diferença: do lado de fora, no canteiro, o estômago do garoto pareceu se descontrair. Se tivesse acontecido alguma coisa, com certeza seria a primeira notícia; morte e destruição eram mais importantes do que turistas retidos em aeroportos.
Ele deixou escapar um longo e lento suspiro e contemplou o céu muito azul.
Todos os dias deste verão tinham sido a mesma coisa: a tensão, a expectativa, o alívio temporário, e mais uma vez a tensão crescente... e sempre, a cada dia com maior insistência, a pergunta: por que nada acontecera ainda?
O garoto continuou a ouvir, caso houvesse um pequeno indício cujo significado os trouxas não tivessem percebido — um desaparecimento inexplicado, talvez, ou algum acidente estranho... mas, à greve dos carregadores de bagagem, seguiram-se notícias sobre a seca no Sudeste (— Espero que o vizinho esteja escutando! — berrou tio Válter. Ele e sua mania de ligar os irrigadores do jardim às três da manhã!), depois a notícia de um helicóptero que quase se acidentara em um campo no Surrey, o divórcio de uma famosa atriz de seu famoso marido (— Como se estivéssemos interessados em seus casos sórdidos fungou tia Petúnia, que acompanhara o caso obsessivamente em todas as revistas em que conseguiu pôr as mãos ossudas).
Harry fechou os olhos para se proteger do céu noturno, agora cintilante, enquanto o locutor continuava:
"... e finalmente, Quito, o periquito australiano, encontrou um jeito novo de se refrescar neste verão. Quito, que mora em Five Feathers, em Barnsley, aprendeu a esquiar na água! Mary Dorkins tem outras informações."
Harry abriu os olhos. Se tinham chegado a periquitos que esquiam, é porque não havia mais nada que valesse a pena ouvir. Virou-se cuidadosamente de barriga e se ergueu sobre os joelhos e cotovelos, preparando-se para engatinhar para longe da janela.
Andara uns cinco centímetros quando várias coisas aconteceram em rápida sucessão.
Um estalo alto e ressonante quebrou o silêncio como um estampido; um gato saiu desabalado de baixo de um carro estacionado e desapareceu de vista; um grito, um palavrão em voz alta e o ruído de louça se espatifando ecoou na sala de estar dos Dursley, e, como se fosse o sinal que estivera aguardando, Harry se pôs de pé com um salto ao mesmo tempo que puxou uma fina varinha do cós da jeans, como se desembainhasse uma espada — mas antes que pudesse erguer completamente o corpo, bateu com o cocuruto na janela aberta dos
Dursley. O barulho resultante fez tia Petúnia dar um berro ainda maior.
O garoto teve a sensação de que havia rachado a cabeça ao meio. As lágrimas escorrendo dos olhos, ele cambaleou, tentando focalizar a rua para descobrir a origem do barulho, mas mal conseguira se endireitar quando duas enormes mãos púrpuras saíram pela janela aberta e o agarraram pelo pescoço.
—Guarde... isso! — rosnou tio Válter no ouvido dele. — Agora...! Antes... que... alguém... veja!
— Tire... as... mãos... de... cima... de mim! — ofegou Harry. Durante alguns segundos os dois pelejaram. O garoto puxando os dedos do tio, grossos como salsichas, com a mão esquerda, enquanto mantinha a varinha erguida com a direita; então, quando a dor na cabeça de Harry deu mais um latejo particularmente forte, tio Válter soltou um grito e largou o sobrinho como se tivesse recebido um choque elétrico. Uma força invisível parecia ter emanado do garoto, tornando impossível segurá-lo.
Ofegante, Harry cambaleou por cima do pé de hortênsia, ergueu-se e olhou a toda volta. Não havia sinal do causador do forte estampido, mas havia muitos rostos espiando de várias janelas vizinhas. O garoto enfiou depressa a varinha no cós da jeans e tentou fazer uma cara inocente.
— Bela noite! — exclamou tio Válter, acenando para a senhora do número sete, defronte, que o observava atentamente por trás das cortinas. — A senhora ouviu o estouro do escape de um carro agora há pouco? Petúnia e eu levamos um grande susto.
Ele continuou a sorrir daquele seu jeito horrível e maníaco até todos os vizinhos curiosos terem desaparecido das várias janelas, então o sorriso virou um esgar de fúria e ele mandou Harry se aproximar outra vez.
O garoto deu uns passos à frente, tomando o cuidado de parar a uma distância em que as mãos estendidas do tio não pudessem recomeçar a esganá-lo.
— Que diabos você está pretendendo com isso, moleque? — perguntou tio Válter com a voz rouca tremendo de fúria.
— Pretendendo com isso o quê? — perguntou Harry com frieza. Não parava de olhar para a esquerda e a direita da rua, na esperança de ver quem produzira o estampido.
— Fazer um barulho desses como se fosse um tiro de partida do lado de fora da nossa...
— Não fui eu que fiz o barulho — respondeu o garoto com firmeza. A cara magra e cavalar de tia Petúnia apareceu agora ao lado da cara larga e vermelha do tio Válter. Estava lívida.
— Por que você estava escondido embaixo da nossa janela?
— É... é, uma boa pergunta, Petúnia. Que é que você estava fazendo embaixo da nossa janela, moleque?
— Ouvindo o noticiário — respondeu Harry, conformado. O tio e a tia trocaram olhares indignados.
— Ouvindo o noticiário! De novo?
— Bom, é que ele muda todos os dias, entende? — respondeu o garoto.
— Não se faça de engraçadinho comigo, moleque! Quero saber que é que você anda realmente tramando — e não me responda outra vez com essa história de que estava ouvindo o noticiário! Você sabe muito bem que gente da sua laia...
— Cuidado, Válter! — cochichou tia Petúnia, e o marido baixou tanto a voz que Harry mal conseguiu ouvi-lo
— ... que gente da sua laia não sai no nosso noticiário!
— É só isso que o senhor sabe — respondeu Harry.
Os Dursley o encararam por alguns segundos, então a tia falou:
— Você é um mentirozinho sórdido. Que é que aquelas... — e aí ela também baixou a voz, e Harry precisou fazer leitura labial para entender a palavra seguinte — ... corujas andam fazendo que não lhe trazem notícias?
— Ah-ah! — exclamou tio Válter com um sussurro triunfante. — Agora sai dessa, moleque! Como se não soubéssemos que você recebe todas as suas notícias por aqueles bichos pestilentos!
Harry hesitou um instante. Custou-lhe algum esforço dizer a verdade desta vez, embora os tios não pudessem saber como se sentia mal em fazê-lo.
— As corujas... não estão me trazendo notícias — respondeu com a voz inexpressiva.
— Não acredito — falou tia Petúnia na mesma hora.
— Nem eu — disse o marido, enfático.
— Sabemos que você está tramando alguma coisa estranha — retorquiu tia
Petúnia.
— Não somos burros, sabe — disse o tio.
— Bom, isso é novidade para mim — retrucou Harry, que começava a se enraivecer, e antes que os Dursley pudessem chamá-lo de volta, o garoto lhes deu as costas, atravessou a frente da casa, pulou por cima da mureta do jardim e começou a subir a rua.
Agora ele estava em apuros e sabia disso. Teria de enfrentar os tios mais tarde e pagar o preço da grosseria, mas isso não o preocupava muito no momento; tinha assuntos mais urgentes na cabeça.
Harry tinha certeza de que o estampido fora produzido por alguém aparatando ou desaparatando. Era exatamente o som que Dobby, o elfo doméstico, fazia quando desaparecia no ar. Será que Dobby andava por ali, na Rua dos Alfeneiros? Será que o elfo o estava seguindo naquele instante?
Quando lhe ocorreu este pensamento, ele se virou para examinar a rua, mas ela parecia completamente deserta e o garoto tinha certeza de que Dobby não era capaz de ficar invisível.
Harry continuou a andar, sem prestar muita atenção ao caminho que estava seguindo, porque nos últimos tempos batia essas ruas com tanta freqüência que seus pés o levavam automaticamente aos lugares preferidos. A cada meia dúzia de passos, olhava por cima do ombro. Algum ser mágico estivera por perto quando ele estava deitado entre as begônias moribundas de tia Petúnia, tinha certeza. Por que não falara com ele, por que não fizera contato, por que estava se escondendo agora?
Então, quando sua frustração atingiu o auge, sua certeza foi se esvaindo.
Talvez não tivesse sido um ruído mágico, afinal. Talvez estivesse tão desesperado para detectar o menor sinal de contato do mundo a que pertencia que simplesmente reagia exageradamente a sons muito comuns. Será que podia ter certeza de que não fora o som de alguma coisa quebrando na casa do vizinho?
Harry teve a sensação surda de que seu estômago despencava e, antes que percebesse, a desesperança que o atormentara o verão inteiro tornou a se apoderar dele.
Amanhã o despertador o acordaria às cinco da madrugada para ele poder pagar à coruja que entregava o Profeta Diário — mas fazia sentido continuar a recebê-lo? Ultimamente Harry apenas corria os olhos pela primeira página e logo atirava o jornal para o lado; quando os idiotas que editavam o Profeta finalmente percebessem que Voldemort voltara dariam a notícia em grandes manchetes, e era só isso que interessava a Harry.
Se tivesse sorte, chegariam também corujas com cartas dos seus melhores amigos, Rony e Hermione, embora toda a esperança que alimentara de que essas cartas lhe trouxessem notícias há muito havia sido riscada do mapa.
Não podemos dizer muita coisa sobre Você-Sabe-Quem, é óbvio... Nos recomendaram para não dizer nada importante para o caso de nossas cartas se extraviarem... Estamos muito ocupados, mas não posso lhe dar detalhes... Tem muita coisa acontecendo, contaremos quando a gente se vir...
Mas quando é que iam se ver? Ninguém parecia muito preocupado em marcar datas. Hermione escrevera um Logo iremos nos ver no cartão que lhe mandara de aniversário, mas quando era esse logo? Pelo que deduzia das vagas insinuações nas cartas dos amigos, Hermione e Rony estavam no mesmo lugar, presumivelmente na casa dos pais de Rony. Mal conseguia suportar a idéia dos dois se divertindo na Toca enquanto ele ficava encalhado na rua dos
Alfeneiros. De fato, ficara tão zangado com os amigos que jogara fora, sem abrir, as duas caixas de bombons da Dedosdemel que haviam lhe mandado de presente de aniversário. Arrependera-se depois ao ver a salada murcha que tia
Petúnia preparara para o jantar daquela noite.
E com o que Rony e Hermione estavam ocupados? Por que ele, Harry, não estava ocupado? Não se mostrara capaz de dar conta de muito mais do que os amigos? Será que tinham se esquecido do que fizera? Não fora ele que entrara no cemitério e vira matarem Cedrico, e depois fora amarrado a uma lápide de sepultura e quase morrera também?
Não pense nisso, Harry disse a si mesmo com severidade, pela milésima vez naquele verão. Já era bem ruim não parar de revisitar o cemitério em pesadelos, sem ficar remoendo a cena nos momentos de vigília também.
Ele virou a esquina e entrou no largo das Magnólias; no meio do caminho, passou a travessa estreita que margeava a garagem onde vira o padrinho pela primeira vez. Sirius, pelo menos, parecia compreender o que ele estava sentindo. Admitamos que as cartas do padrinho eram tão vazias de notícias interessantes quanto as de Rony e Hermione, mas ao menos continham palavras de alerta e consolo em lugar de insinuações torturantes: sei como deve ser frustrante para você... Não se meta em confusões e tudo dará certo... Tenha cuidado e não faça nada sem pensar...
Bom, pensou Harry, ao atravessar o largo das Magnólias para tomar a rua de mesmo nome em direção ao parque, onde já estava escurecendo, de um modo geral atendera à recomendação do padrinho. Pelo menos resistira à tentação de amarrar a mala na vassoura e partir sozinho para a Toca. Achava que se comportara muito bem considerando sua grande raiva e frustração por estar há tanto tempo encalhado na rua dos Alfeneiros, reduzido a se esconder em canteiros na esperança de ouvir alguma coisa que pudesse indicar o que Lord Voldemort andava fazendo. Contudo, era bem exasperante ser aconselhado a não se precipitar por alguém que cumprira doze anos na prisão dos bruxos, Azkaban, fugira, tentara cometer o homicídio pelo qual fora condenado injustamente e sumira no mundo montado em um hipogrifo roubado.
Harry saltou por cima do portão fechado do parque e saiu andando pelo gramado ressequido. O lugar estava tão vazio quanto as ruas vizinhas.
Quando chegou aos balanços, largou-se em um que Duda e os amigos ainda não tinham conseguido quebrar, passou o braço pela corrente e ficou olhando, desanimado, para o chão. Não poderia voltar a se esconder no canteiro dos Dursley. Amanhã, teria de inventar um novo jeito de ouvir o noticiário.
Entrementes, não havia nada por que esperar, exceto mais uma noite inquieta e perturbada, porque, mesmo quando escapava dos pesadelos sobre Cedrico, tinha sonhos intranqüilos sobre longos corredores escuros, todos sem saída ou terminando em portas trancadas, que ele supunha estarem ligados à mesma sensação de estar preso em uma armadilha que experimentava quando acordado. Com freqüência, a velha cicatriz em sua testa formigava desconfortavelmente, mas ele não se enganava que Rony ou Hermione ou Sirius ainda achassem isso muito interessante. No passado, a dor na cicatriz o avisava de que Voldemort estava recobrando forças, mas, agora que o bruxo voltara, os três provavelmente lembrariam a ele que essa irritação rotineira era esperada... não havia com o que se preocupar... não era novidade...
A injustiça disso tudo crescia tanto em seu peito que lhe dava vontade de gritar de fúria. Se não fosse por ele, ninguém saberia que Voldemort voltara! E sua recompensa era ficar encalhado em Little Whinging quatro semanas inteiras, completamente isolado do mundo da magia, reduzido a se acocorar entre begônias secas para poder ouvir notícias de periquitos australianos que sabiam esquiar! Como Dumbledore podia tê-lo esquecido com tanta facilidade? Por que Rony e Hermione tinham se reunido sem convidá-lo? Por quanto tempo mais esperavam que ele aturasse Sirius a lhe dizer para ficar quieto e se comportar; ou resistisse à tentação de escrever para aquela droga do Profeta Diário informando que Voldemort voltara? Esses pensamentos indignados giravam em sua cabeça, e suas entranhas se contorciam de raiva, enquanto a noite abafada e veludosa caía à sua volta, o ar se impregnava com o cheiro quente de grama seca, e o único som que se ouvia era o ronco abafado do tráfego na rua além das grades do parque.
Ele não sabia quanto tempo ficara sentado no balanço quando o som de vozes interrompeu seus devaneios e o fez erguer os olhos. Os lampiões das ruas nos arredores projetavam uma claridade nevoenta suficientemente forte para delinear um grupo de pessoas que vinham atravessando o parque. Uma delas cantava alto uma música grosseira. Os outros riam. Ouvia-se o teque-teque suave das bicicletas caras que eles empurravam.
Harry sabia quem eram. O vulto à frente de todos era, sem dúvida, o seu primo Duda Dursley refazendo o lento caminho para casa, acompanhado por sua gangue fiel.
Duda estava mais corpulento que nunca, mas um ano de dieta rigorosa e a descoberta de um novo talento haviam produzido uma grande mudança em seu físico. Como o tio Válter comentava com quem quisesse ouvir, Duda recentemente se tornara campeão de peso-pesado júnior no Torneio de Boxe Interescolar da Região Sudeste. O "nobre esporte", como o tio costumava dizer, deixara Duda ainda mais formidável do que parecera a Harry nos tempos do ensino fundamental, quando servira de saco de pancadas para o primo. O garoto já não sentia o menor medo de Duda, mas continuava a achar que o fato de ele ter aprendido a socar com mais força e precisão não era motivo para comemorações. A criançada do bairro tinha pavor dele — um pavor ainda maior do que sentia por "aquele garoto Potter", sobre o qual haviam sido avisados de que era um delinqüente da pior espécie e freqüentava o Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis.
Harry observou os vultos escuros que atravessavam o gramado e ficou imaginando quem teriam andado surrando aquela noite. Olhe para o lado, foi o pensamento que lhe passou pela cabeça enquanto os observava. Vamos, olhe para o lado... estou sentado aqui sozinho... venha experimentar...
Se os amigos de Duda o vissem sentado ali, com certeza traçariam uma reta até ele, e o que faria o primo então? Não iria querer fazer papel feio na frente da gangue, mas sentiria muito medo de desafiar Harry... seria realmente divertido observar o dilema de Duda, provocá-lo, observar o primo impotente para reagir... e se um dos outros tentasse acertá-lo, estaria preparado — tinha sua varinha. Que experimentassem... adoraria extravasar um pouco de sua frustração em garotos que no passado tinham infernizado sua vida.
Mas eles não se viraram, não o viram, já estavam quase nas grades. Harry dominou o impulso de chamá-los... procurar briga não era muito inteligente... não devia usar magia... estaria se arriscando outra vez a ser expulso.
As vozes dos companheiros de Duda foram morrendo, eles tinham desaparecido de vista, em direção à rua das Magnólias.
Pronto, Sirius, pensou Harry, desanimado. Nada de precipitações. Não me meti em encrencas. Exatamente o contrário do que você fez.
Ele se levantou e se espreguiçou. Tia Petúnia e Tio Válter pareciam pensar que a hora que Duda chegasse era a hora certa para se voltar para casa, e qualquer minuto depois disso era tarde demais. O tio ameaçara trancar Harry no barraco de ferramentas se ele tornasse a chegar depois de Duda, por isso, reprimindo um bocejo, e ainda mal-humorado, o garoto saiu em direção ao portão do parque.
A Rua das Magnólias, como a dos Alfeneiros, era cheia de grandes casas quadradas com gramados perfeitamente cuidados, todas de propriedade de homens grandes e quadrados que guiavam carros muito limpos, iguais aos do Tio Válter. Harry preferia o bairro de Little Whinging à noite, quando as janelas protegidas por cortinas formavam retalhos de cores vivas no escuro, e ele não corria o risco de ouvir comentários censurando sua aparência "delinqüente" quando passava pelos donos das casas. Caminhou depressa, por isso, na metade da rua das Magnólias tornou a avistar a turma de Duda; estavam se despedindo na entrada do largo das Magnólias. Harry se abrigou sob a copa de um lilaseiro e esperou.
— ... guinchou feito um porco, não foi? — ia dizendo Malcolm, arrancando risos dos colegas.
— Um bom gancho de direita, Dudão — elogiou Pedro.
— Mesma hora amanhã? — perguntou Duda.
— Lá em casa, meus pais vão sair — respondeu Górdon.
— Então, até lá — concordou Duda.
— Tchau, Duda.
— A gente se vê, Dudão!
Harry esperou o resto dos garotos continuar, antes de recomeçar a andar.
Quando as vozes desapareceram na distância, ele entrou de novo no largo das
Magnólias e, apressando o passo, não tardou a chegar a uma distância em que o primo, que caminhava descansadamente, desafinando uma canção, pudesse ouvi-lo.
— Ei, Dudão! — Duda se virou.
— Ah — resmungou. — É você.
— Então, há quanto tempo você é o Dudão? — perguntou Harry.
— Não chateia — rosnou o primo dando-lhe as costas.
— Nome legal — comentou Harry, rindo e acompanhando o passo do primo.
— Mas para mim você sempre será o Dudiquinho.
— Já falei, NÃO CHATEIA! — repetiu Duda, cujas mãos, que mais pareciam presuntos, tinham se fechado.
— Os garotos não sabem que é assim que a mamãe te chama?
— Cala essa boca.
— Você não diz a ela para calar a boca. Então posso usar "Fofinho" e "Duduzinho"?
Duda não respondeu. O esforço para não bater no primo pareceu exigir todo o seu autodomínio.
— Então quem é que vocês andaram espancando esta noite? — indagou
Harry, parando de sorrir. — Outro garoto de dez anos? Sei que acertaram o Marco Evans anteontem...
— Ele estava pedindo — rosnou Duda.
— Ah, é?
— Ele me desacatou.
— Ah, foi? Disse que você parecia um porco que aprendeu a andar nas patas traseiras? Porque isso não é desacatar, Duda, isso é verdade.
Um músculo começou a tremer no queixo de Duda. Harry sentiu uma enorme satisfação de ver que estava enfurecendo o primo; teve a sensação de que bombeava a própria frustração para dentro do primo, a única válvula de escape que tinha.
Os dois viraram na travessa estreita onde Harry vira Sirius pela primeira vez, um atalho entre o largo das Magnólias e a alameda das Glicínias. Estava deserta e muito mais escura do que as duas ruas que ligava, porque não tinha lampiões. Os passos do primo ficaram abafados entre as paredes de uma garagem, a um lado, e uma cerca alta, do outro.
— Você se acha um grande homem carregando essa coisa, não é? — disse Duda depois de alguns segundos.
— Que coisa?
— Essa... essa coisa que você leva escondida.
Harry tornou a rir.
— Não é que você não é tão burro quanto parece, Duda? Mas acho que se fosse não seria capaz de andar e falar ao mesmo tempo.
Harry puxou a varinha. Viu que o primo a olhava de esguelha.
— Você não tem permissão — disse Duda na mesma hora. — Sei que não tem. Seria expulso daquela escola fajuta que você freqüenta.
— Como é que você sabe que as regras não mudaram, Dudão?
— Não mudaram — disse o primo, embora não parecesse totalmente seguro.
Harry riu baixinho.
— Você não tem peito para me enfrentar sem essa coisa, não é? — rosnou Duda.
— E você precisa de quatro amigos às suas costas para atacar um garoto de dez anos. Sabe aquele título de boxe que você vive exibindo? Que idade tinha o seu adversário? Sete? Oito?
— Para sua informação, ele tinha dezesseis anos e ficou desacordado vinte minutos depois que acabei com ele, e era duas vezes mais pesado do que você. Espera só eu contar ao papai que você puxou essa coisa...
— Vai correr para o papai agora, é? Será que o Dudinha campeão do papai ficou com medo da varinha do Harry malvado?
— Você não é tão valente à noite, não é? — caçoou Duda.
— Estamos de noite, Dudiquinho. É como a gente chama quando fica escuro assim.
— Estou falando quando você está deitado — vociferou Duda.
Parara de andar. Harry parou também, encarando o primo. Do pouco que conseguia ver do rosto largo de Duda, ele parecia estranhamente triunfante.
— Como assim, não sou valente quando estou deitado? — perguntou Harry inteiramente pasmo. — Do que é que você acha que tenho medo, dos travesseiros ou de outra coisa assim?
— Eu ouvi você a noite passada — disse Duda sem fôlego. —Falando durante o sono. Gemendo.
— Como assim? — repetiu Harry, mas com uma sensação de frio e afundamento no estômago. Tornara a visitar o cemitério em sonhos, na noite anterior.
Duda soltou uma gargalhada rouca, depois fez uma voz de falsete e lamúria.
— Não matem Cedrico! Não matem Cedrico! Quem é Cedrico... seu namorado?
— Eu... você está mentindo — contestou Harry maquinalmente. Mas sua boca secara. Sabia que o primo não estava mentindo — de que outra forma poderia saber o nome de Cedrico?
— Papai! Me ajude, papai! Ele vai me matar, papai! Buuuu!
— Cala a boca — disse Harry em voz baixa. — Cala a boca, Duda, estou te avisando!
— Vem me ajudar, papai! Mamãe, vem me ajudar! Ele matou Cedrico! Papai, me ajude! Ele vai... Não aponta essa coisa pra mim!
Duda recuou contra a parede da travessa. Harry estava apontando a varinha diretamente para o seu coração. Ele sentia catorze anos de ódio ao primo palpitarem em suas veias — o que não daria para atacá-lo agora, enfeitiçá-lo de tal jeito que Duda precisaria rastejar até em casa como um inseto, mudo, antenas brotando de sua cabeça...
— Nunca mais volte a falar nisso — rosnou Harry. — Está me entendendo?
— Aponte essa coisa para outro lado!
— Eu perguntei, você me entendeu?
— Aponte isso para outro lado!
— VOCÊ ME ENTENDEU?
— AFASTE ESSA COISA DE...
Duda soltou uma exclamação estranha e tremida, como se o tivessem mergulhado em água gelada.
Alguma coisa acontecera à noite. O azul anil e estrelado do céu noturno de repente ficou negro e sem luz — as estrelas, a lua, os lampiões enevoados em cada extremo da travessa haviam desaparecido. O ronco distante dos carros e o murmúrio das árvores haviam desaparecido. A tepidez da noite de repente se transformou em um frio cortante. Os garotos se viram envolvidos por uma escuridão silenciosa, impenetrável e total, como se a mão de um gigante tivesse atirado um manto gelado e espesso sobre a travessa, cegando-os.
Por uma fração de segundo Harry pensou que tivesse feito alguma mágica involuntária, apesar de estar resistindo o máximo que podia — em seguida o seu raciocínio emparelhou com os seus sentidos — ele não tinha poder para apagar as estrelas. Virou, então, a cabeça para cá e para lá, tentando ver alguma coisa, mas as trevas cobriam seus olhos como um véu sem peso.
A voz aterrorizada de Duda espocou nos ouvidos de Harry.
— Q-que é que você está f-fazendo? P-pára com isso!
— Não estou fazendo nada! Cala a boca e fica parado!
— Não estou v-vendo nada! F-fiquei cego! Eu...
— Eu falei para você calar a boca!
Harry parou, imóvel, virando os olhos enceguecidos para a direita e a esquerda. O frio era tão intenso que ele tremia da cabeça aos pés; arrepios brotaram em seus braços e os pêlos de sua nuca ficaram em pé — ele abriu os olhos o mais que pôde, arregalando-os para todos os lados, sem ver.
Era impossível... eles não podiam estar ali... não em Little Whinging... Harry apurou os ouvidos... pôde ouvi-los antes de vê-los.
— Vou contar ao papai! — choramingou Duda. — C-cadê você? Q- que é que você está f-fa...?
— Quer calar a boca? — sibilou Harry. — Estou tentando esc...
Mas emudeceu.
Acabara de ouvir exatamente o que estivera receando.
Havia alguma coisa na travessa além deles, alguma coisa que respirava em arquejos roucos e secos. Harry sentiu um pavor terrível e instantâneo parado ali na noite gélida.
— P-pára com isso. Pára de fazer isso! Vou socar você, juro que vou!
— Duda, cala... PAM.
Um punho fez contato com o lado da cabeça de Harry, erguendo-o do chão. Luzinhas brancas cintilaram diante dos seus olhos. Pela segunda vez em uma hora, ele sentiu a cabeça rachar ao meio; no momento seguinte, estatelou-se no chão e a varinha voou de sua mão.
— Seu lesado! — berrou Harry, os olhos marejando de dor, ao mesmo tempo que tentava levantar apoiado nas mãos e nos joelhos, apalpando freneticamente a escuridão. Ele ouviu Duda tentar se afastar, bater na cerca da travessa, tropeçar.
— DUDA, VOLTA AQUI! VOCÊ ESTÁ CORRENDO DIRETO PARA A COISA!
Ouviu-se um guincho horrível e os passos de Duda pararam. No mesmo instante Harry sentiu um frio paralisante às costas que só podia significar uma coisa. E havia mais de uma.
— DUDA, FIQUE DE BOCA FECHADA! FAÇA O QUE QUISER, MAS FIQUE DE BOCA FECHADA! Varinha! — murmurou Harry, nervoso, suas mãos saltando pelo chão como aranhas. — Onde está... varinha... depressa... lumus!
Ordenou o feitiço automaticamente, desesperado por uma luz que o ajudasse em sua procura — e, para seu alívio e descrença, a luz acendeu a centímetros de sua mão direita — a ponta da varinha acendeu. Harry agarrou-a, ficou em pé e se virou.
Seu estômago deu voltas.
Um vulto altaneiro, encapuzado, deslizava em sua direção, flutuando sobre o solo, sem pés nem rosto visíveis sob as vestes, sugando a noite à medida que se aproximava.
Cambaleando para trás, o garoto ergueu a varinha.
— Expecto patronum!
Um fiapo de fumaça prateada disparou da ponta da varinha e o dementador retardou o passo, mas o feitiço não funcionara direito; tropeçando nos próprios pés, Harry recuou mais, à medida que o dementador avançava para ele e o pânico anuviava seu cérebro — concentre...
Um par de mãos cinza, sarnentas e viscosas se estendeu para ele. Um ruído crescente invadiu seus ouvidos.
— Expecto patronum!
Sua voz soou abafada e distante. Outro fiapo de fumaça prateada mais tênue que o anterior saiu da varinha — não conseguiu mais do que isso, não conseguiu realizar o feitiço.
Harry ouviu uma risada em sua mente, uma risada desagradável e aguda... sentiu o cheiro podre do dementador, um frio letal encheu seus pulmões, afogando-o — pense... alguma coisa alegre...
Mas não havia felicidade nele... os dedos enregelados do dementador começaram a se aproximar de sua garganta — a risada aguda tornou-se cada vez mais alta e uma voz falou em sua mente:
"Curve-se para a morte, Harry... talvez ela seja indolor... eu não saberia dizer... Nunca morri..."
Ele nunca reveria Rony e Hermione...
E os rostos dos amigos surgiram com nitidez em sua mente enquanto ele lutava para respirar.
— EXPECTO PATRONUM!
Um enorme veado de prata irrompeu da ponta de sua varinha; a galhada do animal atingiu o dementador na parte do corpo em que deveria estar o coração; o dementador foi atirado para trás, imponderável como a escuridão, e quando o veado avançou ele se precipitou para longe, como um morcego, derrotado.
— POR AQUI! — gritou Harry para o veado. Dando meia-volta, ele saiu correndo pela travessa, segurando no alto a varinha acesa. — DUDA? DUDA!
Harry deu apenas uns dez passos e já os alcançou: Duda estava enrascado no chão, os braços cruzados sobre o rosto. Um segundo dementador agachava-se para ele, agarrando seus pulsos com as mãos escorregadias, forçando-as a se separarem lentamente, quase carinhosamente, aproximando a cabeça encapuzada do rosto de Duda como se fosse beijá-lo.
— PEGA ELE! — berrou Harry, e, com um ruído de força e velocidade, o veado prateado que ele conjurara passou a galope. A cara sem olhos do dementador estava a menos de três centímetros de Duda quando a galhada de prata o atingiu; ele foi atirado para o ar e, como seu companheiro, saiu voando e foi absorvido pela escuridão; o veado se dirigiu a meio galope para um extremo da travessa e se dissolveu em uma névoa argentina.
A luz, as estrelas e os lampiões recobraram vida. Uma brisa morna varreu a travessa. As árvores farfalharam pelos jardins dos arredores e o ruído abafado dos carros no largo das Magnólias encheu mais uma vez o ar.
Harry ficou muito quieto, todos os seus sentidos vibrando, procurando absorver o retorno à normalidade. Passado um instante, ele percebeu que sua camiseta estava grudada ao corpo; ele estava alagado de suor.
Não conseguia acreditar no que acabara de acontecer. Dementadores ali, em Little Whinging.
Duda continuava enrascado no chão, choramingando e tremendo. Harry se abaixou para ver se o primo estava em condições de se levantar, mas neste instante ouviu alguém correndo a suas costas. Instintivamente, ele tornou a erguer a varinha e girou nos calcanhares para enfrentar o recém-chegado.
A Sra. Figg, a velhota gagá, sua vizinha, apareceu ofegante. Seus cabelos grisalhos escapavam por baixo da rede que usava, do seu pulso pendia uma saca de compras de fio metálico e seus calcanhares sobravam para fora nas pantufas de tecido xadrez. Harry procurou esconder rapidamente a varinha, mas...
— Não guarde isso, menino idiota! — gritou ela, esganiçada. — E se houver mais deles por aqui? Ah, eu vou matar o Mundungo Fletcher!