Posted by : Unknown junho 04, 2014

Capítulo 23

Era por isso que Dumbledore não queria mais olhar Harry nos olhos? Será que esperava ver Voldemort olhando através deles, receoso talvez que o verde vivo de repente pudesse virar vermelho, com pupilas estreitas e verticais como as de um gato? Harry se lembrava de como o rosto ofídico de Voldemort uma vez irrompera da nuca do Prof. Quirrell e passara os dedos pela própria cabeça, e se perguntava agora como seria se Voldemort irrompesse do seu crânio.
Sentiu-se sujo, contaminado como se fosse portador de um vírus letal, indigno de se sentar na viagem de volta ao lado de gente inocente e limpa, cujos corpos e mentes não estavam maculados por Voldemort... ele não apenas vira a cobra, ele fora a cobra, sabia disso agora...
Ocorreu-lhe então um pensamento, uma lembrança que emergira em sua mente, e que fazia suas entranhas se contorcerem como cobras.
Que é que ele queria, além de seguidores?
Uma coisa que só poderia obter escondido... como uma arma. Algo que não possuía da última vez.
— Eu sou a arma — pensou Harry, era como se estivessem injetando veneno em suas veias, enregelando-o, fazendo-o suar no balanço do trem ao atravessar o túnel escuro. — Sou eu que Voldemort está tentando usar, é por isso que existem guardas à minha volta aonde vou, não é para me proteger, é para proteger as outras pessoas, só que não está funcionando, não podem pôr gente me guardando o tempo todo em Hogwarts... Eu ataquei o Sr. Weasley ontem à noite, fui eu. Voldemort me levou a fazer isso e pode estar dentro de mim neste instante, escutando os meus pensamentos...
— Você está bem, Harry, querido? — cochichou a Sra. Weasley, inclinando-se por cima de Gina para falar com ele, enquanto o trem sacudia túnel afora. — Você não está me parecendo muito bem. Está enjoado?
Todos olharam para ele. Harry balançou a cabeça violentamente e ergueu a cabeça para ler um anúncio de seguro de casas.
— Harry, querido, você tem certeza de que está bem? — a Sra. Weasley repetiu a pergunta preocupada, quando contornavam a relva malcuidada no centro do largo Grimmauld. — Você está ficando cada vez mais pálido... tem certeza de que dormiu hoje de manhã? Suba logo para o seu quarto e durma umas duas horas antes do jantar, está bem?
Ele concordou com a cabeça; ali estava uma desculpa de bandeja para não conversar com ninguém, que era exatamente o que ele queria, então, quando abriram a porta, ele passou correndo pelo porta-guarda-chuvas de perna de trasgo, subiu as escadas e entrou no quarto que dividia com Rony.
Ali, começou a andar de um lado para outro, passando pelas camas e a moldura vazia do retrato de Fineus Nigellus, seu cérebro borbulhante de perguntas e idéias sempre mais assustadoras.
Como foi que ele virara cobra? Talvez fosse um animago... não, não podia ser, ele saberia... talvez Voldemort fosse um animago... é, pensou Harry, isto encaixaria, ele naturalmente se transformaria em cobra... e quando está me possuindo, então nós dois... mas isso ainda não explica como fui a Londres e voltei para a minha cama num espaço de cinco minutos... mas, por outro lado, Voldemort é o bruxo mais poderoso do mundo, excluindo Dumbledore, provavelmente não seria problema para ele transportar alguém nessa velocidade.
E então, com uma horrível pontada de pânico, pensou: mas isto é uma insanidade — se Voldemort está me possuindo, eu estou dando a ele uma visão nítida da sede da Ordem da Fênix neste momento! Ele saberá quem pertence a Ordem e onde Sirius está... e ouvi um monte de coisas que não deveria ter ouvido, tudo que Sirius me contou na noite em que cheguei...
Só havia uma coisa a fazer: teria de abandonar o largo Grimmauld neste instante. Passaria o Natal em Hogwarts sem os outros, o que pelo menos os manteria sãos e salvos durante as festas... mas não, não adiantaria, ainda havia muita gente em Hogwarts para ele aleijar e ferir... E se fosse Simas, Dino ou Neville da próxima vez? Ele interrompeu a caminhada e parou, olhando para a moldura vazia de Fineus Nigellus. Uma sensação de peso estava assentando no fundo do seu estômago. Não tinha alternativa, teria de voltar para a rua dos Alfeneiros, cortar completamente seus vínculos com outros bruxos.
Bom, se tinha de fazer isso, pensou, não adiantava continuar ali. Esforçando-se ao máximo para não pensar como os Dursley iriam reagir quando o encontrassem à porta de entrada seis meses antes do esperado, ele se encaminhou para o seu malão, bateu a tampa e trancou-o à chave, depois automaticamente correu os olhos pelo quarto à procura de Edwiges antes de lembrar que ela ficara em Hogwarts — bom, a gaiola seria uma coisa a menos a carregar —, passou então a mão em uma extremidade da mala e já a arrastara metade do caminho até a porta quando uma voz debochada perguntou:
— Está fugindo, é?
Ele se virou. Fineus Nigellus apareceu na tela do seu quadro, apoiado na moldura, e olhava Harry com uma expressão divertida no rosto.
— Não, não estou fugindo — respondeu Harry secamente, arrastando o malão mais alguns passos pelo quarto.
— Pensei — disse Fineus Nigellus, acariciando a barba em ponta — que para pertencer à Grifinória a pessoa precisava ser corajosa. Está me parecendo que você teria se dado melhor na minha casa. Nós da Sonserina somos corajosos, sim, mas não somos burros. Por exemplo, se nos derem opção, sempre escolheremos salvar a pele.
— Não é a minha pele que estou salvando — disse Harry tenso, puxando o malão por um trecho do tapete roído de traças particularmente irregular em frente à porta.
— Ah, estou entendendo — disse o bruxo, ainda acariciando a barba —, isso não é uma fuga covarde, você está sendo nobre.
Harry ignorou-o. Sua mão já estava na maçaneta quando Fineus Nigellus disse indolentemente:
— Tenho um recado de Alvo Dumbledore para você. Harry se virou totalmente.
— Qual é?
— Fique onde está.
— Eu não me mexi! — exclamou Harry, a mão ainda na maçaneta. — Então, qual é o recado?
— Eu acabei de lhe dar, bobalhão — disse Fineus Nigellus serenamente. — Dumbledore manda dizer: Fique onde está.
— Por quê? — perguntou Harry ansioso, deixando cair o malão. — Por que ele quer que eu fique? Que mais ele disse?
— Só isso — respondeu Fineus, erguendo uma sobrancelha fina e negra, como se achasse Harry impertinente.
A irritação de Harry veio à tona como uma cobra emergindo da relva alta. Estava exausto, estava confuso além da conta, experimentara terror, alívio, e novamente terror nas últimas doze horas, e ainda assim Dumbledore não queria falar com ele!
— Então é só isso? — disse em voz alta. — Fique onde está. Foi só o que me disseram também quando fui atacado por aqueles Dementadores! Fique parado enquanto os adultos resolvem o problema, Harry! Mas não vamos nos dar ao trabalho de lhe dizer nada, porque o seu pequeno cérebro talvez não possa entender!
— Sabe — disse Fineus Nigellus, em tom ainda mais alto do que Harry —, era exatamente por isso que eu detestava ser professor! Os jovens são tão infernalmente convencidos de que têm absoluta razão em tudo. Será que ainda não lhe ocorreu, meu pobre presunçoso empolado, que pode haver uma excelente razão para o diretor de Hogwarts não confiar a você cada pequeno detalhe dos planos dele? Você nunca parou, ao se sentir desprezado, a observar que a obediência às ordens de Dumbledore nunca o colocou em perigo? Não. Não, como todos os jovens, você tem certeza de que só você sente e pensa, só você reconhece o perigo, só você é bastante inteligente para perceber o que o Lorde das Trevas está planejando...
— Então ele está planejando alguma coisa com relação a mim? — perguntou Harry depressa.
— Foi isso que eu disse? — retorquiu Fineus Nigellus, examinando indolentemente suas luvas de seda. — Agora, se me dá licença, tenho mais a fazer do que escutar as agonias de um adolescente... um bom dia para você.
E ele deslizou para a borda da moldura e desapareceu de vista.
— Ótimo, então vá! — berrou Harry para a moldura vazia. — E diga ao Dumbledore que eu agradeço por nada!
A tela vazia continuou silenciosa. Espumando, Harry arrastou o malão de volta aos pés da cama, e se atirou de cara para baixo nas cobertas roídas de traças, de olhos fechados, seu corpo pesado e dolorido.
Tinha a sensação de ter viajado quilômetros sem fim... parecia impossível que havia menos de vinte e quatro horas Cho Chang se aproximara dele sob o ramo de visgo... ele estava tão cansado... tinha medo de adormecer... mas não sabia quanto tempo resistiria ao sono... Dumbledore lhe dissera para ficar... isto devia significar que podia dormir... mas tinha medo... e se acontecesse outra vez?
Ele foi afundando nas sombras...
Parecia que havia um filme em sua cabeça esperando para começar. Ele se viu andando por um corredor deserto em direção a uma porta preta e simples, passando por paredes de pedra tosca, archotes, e um portal aberto para um lance de escada de pedra que descia à esquerda...
Chegou à porta fechada, mas não conseguiu abri-la... ficou parado olhando, desesperado para entrar... alguma coisa que ele desejava de todo o coração estava atrás da porta... um prêmio que superava todos os seus sonhos... se ao menos sua cicatriz parasse de formigar... então ele seria capaz de pensar com maior clareza...
— Harry — disse a voz de Rony muito, muito distante: — Mamãe mandou dizer que o jantar está pronto, mas que guarda alguma coisa se você quiser continuar deitado.
Harry abriu os olhos, mas Rony já saíra do quarto. Ele não quer ficar sozinho comigo, pensou Harry. Não depois do que ouviu Moody dizer.
Supunha que nenhum deles quisesse que ele continuasse ali, agora que sabiam o que havia dentro dele.
Não desceria para jantar, não iria impor sua companhia a ninguém. Virou-se para o outro lado, e uns minutos depois voltou a adormecer. Acordou muito mais tarde, nas primeiras horas da manhã, suas entranhas doendo de fome, e Rony roncando na cama ao lado. Apertando os olhos para enxergar, ele viu o contorno escuro de Fineus Nigellus outra vez no quadro e lhe ocorreu que Dumbledore provavelmente mandara o bruxo para vigiá-lo, caso atacasse alguém.
A sensação de estar sujo se intensificou. Quase desejou não ter obedecido a Dumbledore... se era assim que ia ser sua vida no largo Grimmauld, talvez ele estivesse melhor na rua dos Alfeneiros.
Todos os outros passaram a manhã seguinte pendurando decorações de Natal. Harry não se lembrava de jamais ter visto Sirius tão bem-humorado; estava até cantando músicas natalinas, aparentemente satisfeito porque iria ter companhia para o Natal. Harry ouvia a voz do padrinho ecoando através do soalho na fria sala de visitas onde se sentara sozinho, observando pelas janelas o céu empalidecer cada vez mais, ameaçando nevar, sentindo o tempo todo um prazer selvagem de estar dando aos outros a oportunidade de continuarem a falar dele, como deviam estar fazendo. Quando ouviu a Sra. Weasley chamar seu nome baixinho ao pé da escada, por volta da hora do almoço, ele se retirou para mais longe no andar de cima e ignorou o seu chamado.
Por volta das seis horas, a campainha tocou e a Sra. Black recomeçou a gritar. Supondo que Mundungo ou outro membro da Ordem estivesse à porta, Harry simplesmente se acomodou mais confortavelmente contra a parede do quarto de Bicuço onde se escondera, tentando não ligar para a fome que sentia enquanto dava ratos mortos ao hipogrifo. Levou um certo susto quando alguém bateu com força na porta alguns minutos depois.
— Sei que você está aí — ouviu a voz de Hermione. — Quer fazer o favor de sair? Quero falar com você.
— Que é que você está fazendo aqui? — perguntou Harry, abrindo a porta enquanto Bicuço recomeçava a arranhar o chão coberto de palha à procura de pedacinhos de rato que pudesse ter deixado cair. — Pensei que estivesse esquiando com seus pais.
— Bom, para dizer a verdade, esquiar não é bem a minha praia — respondeu Hermione. — Então vim passar o Natal aqui. — Havia neve em seus cabelos e seu rosto estava corado de frio. — Mas não conte ao Rony. Eu disse que esquiar era muito bom porque ele ficou rindo muito. Meus pais estão um pouco desapontados, mas eu falei que todos os alunos que estão levando os exames a sério ficaram em Hogwarts para estudar. Eles querem que eu me dê bem, vão compreender. Em todo o caso — disse com energia —, vamos para o seu quarto, a mãe de Rony acendeu a lareira de lá e mandou sanduíches.
Harry acompanhou-a de volta ao segundo andar. Quando entrou no quarto ficou muito surpreso de ver Rony e Gina à sua espera, sentados na cama de Rony.
— Vim no Nôitibus Andante — disse Hermione despreocupada, tirando o casaco antes que Harry tivesse tempo de falar. — Dumbledore me contou o que aconteceu ontem de manhã, mas precisei esperar o encerramento oficial do trimestre para viajar. A Umbridge já está lívida de raiva porque vocês desapareceram bem debaixo do nariz dela, embora Dumbledore tenha lhe explicado que o Sr. Weasley estava no St. Mungus, e dera a todos vocês permissão para visitá-lo. Então...
Ela se sentou ao lado de Gina, e as duas e Rony olharam para Harry.
— Como é que você está se sentindo? — perguntou Hermione.
— Ótimo — disse Harry rígido.
— Ah, não mente, Harry — disse ela com impaciência. — Rony e Gina contaram que você está se escondendo de todo o mundo desde que voltaram do hospital.
— Disseram, foi? — comentou Harry olhando feio para Rony e Gina. Rony olhou para os pés, mas Gina continuou impassível.
— E está mesmo! E não quer olhar para nenhum de nós!
— Vocês é que não querem olhar para mim! — respondeu Harry zangado.
— Quem sabe vocês estão se revezando para olhar e por isso se desencontram — arriscou Hermione, os cantos da boca tremendo.
— Muito engraçado — retorquiu Harry, virando as costas.
— Ah, pare de se sentir incompreendido — disse Hermione com rispidez. — Olha, os outros me contaram o que você ouviu ontem à noite com as Orelhas
Extensíveis...
— E? — rosnou Harry, as mãos enfiadas nos bolsos olhando a neve cair em densos flocos lá fora. — Todos ficaram falando de mim, é? Muito bem, estou me acostumando.
— Nós queríamos falar com você — disse Gina —, mas você ficou se escondendo desde que voltamos...
— Eu não queria que ninguém falasse comigo — respondeu Harry, sentindo-se cada vez mais exasperado.
— Pois foi burrice sua — disse Gina zangada —, uma vez que não conhece ninguém que tenha sido possuído por Você-Sabe-Quem além de mim, e eu posso lhe dizer como é que a pessoa se sente.
Harry ficou muito quieto quando o impacto dessas palavras o atingiu. Então girou nos calcanhares para encarar Gina.
— Eu me esqueci.
— Sorte sua — disse Gina calmamente.
— Me desculpe — pediu ele, e estava sendo sincero. — Então... então, você acha que eu não estou possuído?
— Bom, você consegue se lembrar de tudo que faz? Você tem longos períodos de ausência em que não é capaz de dizer o que andou fazendo?
Harry tentou se lembrar.
— Não.
— Então Você-Sabe-Quem nunca possuiu você — disse Gina com simplicidade. — Quando ele fez isso comigo, eu não conseguia me lembrar onde tinha estado durante horas. Dava por mim em algum lugar, e não sabia como tinha ido parar lá.
Harry nem ousava acreditar, sentiu diminuir o peso em seu peito independentemente de sua vontade.
— Mas o sonho que tive sobre seu pai e a cobra...
— Harry, você já teve esses sonhos antes — disse Hermione. — Você teve visões do que Voldemort estava tramando no ano passado.
— Esta foi diferente — contestou ele balançando a cabeça. — Eu estava dentro daquela cobra. Era como se eu fosse a cobra... e se Voldemort tiver me transportado para Londres?
— Um dia — disse Hermione muito exasperada — você vai ler Hogwarts: uma história, e talvez se lembre de que não é possível aparatar nem desaparatar na escola. Nem mesmo Voldemort poderia fazer você sair voando do seu dormitório, Harry.
— Você não saiu de sua cama, cara — disse Rony. — Eu vi você se debatendo no sono pelo menos um minuto antes de conseguirmos acordá-lo.
Harry recomeçou a andar de um lado para outro do quarto, refletindo. O que estavam lhe dizendo não consolava apenas, fazia sentido... sem pensar, ele tirou um sanduíche do prato em cima da cama e estufou-o vorazmente na boca.
Então eu não sou uma arma, pensou Harry. Seu peito inchou de felicidade e alívio e ele teve vontade de fazer coro a Sirius quando o ouviram passar pela porta do quarto em direção ao de Bicuço, cantando: "Deus lhes dê a paz, alegres hipogrifos", a plenos pulmões.
Como é que ele poderia ter sonhado em voltar à rua dos Alfeneiros para passar o Natal? O prazer de Sirius em ter de novo a casa cheia, e principalmente em ter Harry de volta, foi contagioso. Deixara de ser o anfitrião carrancudo do verão; agora parecia resolvido que todos deviam se alegrar tanto quanto ele, se não mais do que teriam se alegrado em Hogwarts, enquanto trabalhava sem descanso nos preparativos para o Dia de Natal, limpando e decorando a casa com a ajuda dos garotos, de modo que, quando finalmente todos foram se deitar na véspera do Natal, a casa estava quase irreconhecível. Os lustres oxidados não tinham mais teias de aranha, mas guirlandas de azevinho e serpentinas douradas e prateadas; neve mágica brilhava em montes sobre os tapetes gastos; uma grande árvore de Natal obtida por Mundungo, e decorada com fadinhas vivas, ocultava a árvore genealógica da família de Sirius, e até as cabeças empalhadas de elfos na parede do corredor usavam gorros e barbas de Papai Noel.
Harry acordou na manhã de Natal e encontrou uma pilha de presentes ao pé da cama, Rony já estava abrindo a segunda metade de uma pilha bem maior.
— Boa safra este ano — informou a Harry, através de uma nuvem de papel. — Obrigado pela Bússola para Vassouras, é excelente; melhor que o presente da Hermione: ela me deu uma agenda para anotar deveres...
Harry procurou entre os seus presentes e encontrou um com a caligrafia de Hermione. A amiga lhe dera também um livro que parecia um diário, exceto que todas as vezes que ele abria uma página ouvia coisas do tipo: Faça hoje ou pague o preço!
Sirius e Lupin haviam presenteado Harry com uma coleção de excelentes livros, A magia defensiva na prática e seu uso contra as artes das trevas, contendo esplêndidas e comoventes ilustrações coloridas de todos as contra-azarações e os feitiços descritos. Harry folheou o primeiro volume, curioso; dava para ver que seria extremamente útil nos seus planos para a AD Hagrid lhe mandara uma carteira de pele marrom que tinha presas, que ele supunha fosse um Feitiço Antiladrão, mas que infelizmente o impediu de usá-la para guardar dinheiro sem perder os dedos. O presente de Tonks foi um pequeno modelo de Firebolt, que ele fez voar pelo quarto desejando ainda ter a sua versão em tamanho natural; Rony lhe dera uma enorme caixa de Feijõezinhos de Todos os Sabores, o Sr. e a Sra. Weasley, o costumeiro suéter tricotado à mão e algumas tortas de frutas secas e especiarias, e Dobby um quadro realmente horrendo que Harry suspeitava ter sido pintado pelo próprio elfo. Acabara de virá-lo para ver se ficava melhor de cabeça para baixo quando ouviram um craque, e Fred e Jorge aparataram aos pés de sua cama.
— Feliz Natal — desejou-lhe Jorge. — Não desça agora.
— Por que não? — perguntou Rony.
— Mamãe está chorando outra vez — comentou Fred pesaroso. — Percy devolveu o pulôver de Natal.
— Sem nem um bilhete — acrescentou Jorge. — Não perguntou como vai o papai nem o visitou nem nada.
— Tentamos consolá-la — disse Fred, contornando a cama para espiar o quadro de Harry. — Eu disse a ela que Percy não passa de um monte de bosta de rato metido a besta.
— Não adiantou – comentou Jorge, se servindo de um Sapo de Chocolate. —
Então Lupin nos substituiu. Acho que é melhor deixar que ele a console antes de descermos para o café.
— Afinal, que é que isso pretende retratar? — perguntou Fred apertando os olhos para entender o quadro de Dobby. — Parece um gibão com dois olhos negros.
— É o Harry! — exclamou Jorge, apontando para as costas do quadro. — É o que diz aqui!
— Está bem parecido — comentou Fred rindo. Harry atirou nele a nova agenda de deveres; ela bateu na parede oposta e caiu no chão dizendo alegremente: Se você pôs os pingos nos is e cortou os tês então pode fazer o que quiser!
Eles se levantaram e se vestiram. Ouviam os vários moradores da casa desejando "Feliz Natal" uns aos outros. Na descida, encontraram Hermione.
— Obrigada pelo livro, Harry — disse ela feliz. — Há séculos que eu andava querendo essa Nova teoria de numerologia! E aquele perfume é realmente diferente, Rony.
— Nem por isso — disse Rony. — Para quem é esse aí? — perguntou, indicando com a cabeça o presente muito bem embrulhado que Hermione carregava.
— Monstro — disse ela animada.
— É melhor não ser roupa! — preveniu-a Rony. — Você lembra o que o Sirius disse: o Monstro sabe demais, não pode ser libertado.
— Não é roupa — respondeu Hermione —, embora, se eu pudesse, certamente lhe daria outra coisa para usar em vez daquele trapo imundo. Não, é uma colcha de retalhos, achei que poderia alegrar o quarto dele.
— Que quarto? — perguntou Harry, baixando a voz para cochichar pois estavam passando pelo retrato da mãe de Sirius.
— Bom, o Sirius diz que não é bem um quarto, é mais uma toca — explicou Hermione. — Pelo que sei, ele dorme embaixo do aquecedor naquele armário junto à cozinha.
A Sra. Weasley era a única pessoa no porão quando eles chegaram. Estava parada ao lado do fogão e parecia ter tido uma forte gripe quando lhes desejou "Feliz Natal", e todos desviaram o olhar.
— Ah, então esse é o quarto do Monstro? — disse Rony, indo até uma porta encardida no canto oposto à despensa. Harry nunca a vira aberta.
— É — disse Hermione, agora um pouco nervosa. — Hum... acho que é melhor batermos.
Rony bateu na porta com os nós dos dedos, mas não houve resposta.
— Deve andar bisbilhotando lá em cima — disse ele, e, sem maior hesitação, escancarou a porta. – Irra!
Harry espiou para dentro. A maior parte do armário estava ocupada por um enorme aquecedor antigo, mas no espacinho embaixo da tubulação Monstro arrumara para ele um lugar que se assemelhava a um ninho. Um emaranhado de trapos variados e cobertores velhos malcheirosos em que Monstro se aconchegava para dormir toda noite. Aqui e ali, entre as roupas, havia pão dormido e farelos embolorados de queijo. Em um canto, brilhavam pequenos objetos e moedas que Harry imaginava que o elfo tivesse salvo, como uma pega, do expurgo que Sirius estava fazendo na casa, e também conseguira salvar as fotografias de família que Sirius jogara fora durante o verão. Os vidros podiam estar partidos, mas as pessoas em preto e branco olhavam-no com arrogância, inclusive — ele sentiu um solavanco no estômago — a mulher de cabelos negros e pálpebras caídas a cujo julgamento ele assistira na Penseira de Dumbledore: Belatriz Lestrange. Pelo jeito, a fotografia dela era a favorita de Monstro; ele a colocara à frente das demais e colara o vidro inabilmente com fita adesiva.
— Acho que vou deixar o presente dele aí — disse Hermione, colocando o embrulho bem-feito no côncavo dos trapos e cobertas, e fechando silenciosamente a porta. — Ele o encontrará mais tarde, isto resolverá.
— Pensando bem — disse Sirius saindo da despensa com um enorme peru na hora em que eles fechavam a porta do armário —, alguém tem visto o Monstro ultimamente?
— Não o vejo desde a noite em que voltamos — respondeu Harry. — Você estava expulsando o Monstro da cozinha.
— É... – disse Sirius franzindo a testa. — Sabe, acho que essa foi a última vez que o vi também... deve estar escondido em algum lugar lá fora.
— Ele não poderia ter ido embora? — perguntou Harry. — Quero dizer, quando você disse "fora", será que ele não pensou que você queria dizer fora da casa?
— Não, não, elfos domésticos não podem ir embora a não ser que ganhem roupas. Estão presos à casa da família.
— Eles podem sair de casa se realmente quiserem — contrapôs Harry. — Dobby saiu da casa dos Malfoy para me dar avisos há três anos. Tinha de se castigar depois, mas ainda assim saía.
Sirius pareceu ligeiramente desconcertado por um momento, então disse:
— Vou procurá-lo depois, imagino que o encontre lá em cima, se acabando de chorar em cima dos calções velhos da minha mãe ou coisa parecida. Naturalmente pode ter se escondido no armário de ventilação e morrido... mas não devo alimentar esperanças.
Fred, Jorge e Rony riram; Hermione, porém, pareceu censurá-lo.
Depois do almoço natalino, os Weasley, Harry e Hermione estavam programando visitar mais uma vez o Sr. Weasley, acompanhados por Olho-Tonto e Lupin. Mundungo apareceu em tempo de provar o pudim de Natal e a sobremesa, tendo conseguido pedir um carro "emprestado" para a ocasião, pois o metrô não funcionava no dia de Natal. O carro, que Harry duvidava muito que tivesse sido obtido com o consentimento do dono, fora ampliado por dentro com um feitiço, como o do velho Ford Anglia da família Weasley.
Embora externamente tivesse tamanho normal, dez pessoas, afora Mundungo no lugar do motorista, podiam se acomodar com conforto dentro dele. A Sra. Weasley hesitou antes de entrar — Harry sabia que sua desaprovação a Mundungo conflitava com o seu desagrado em viajar sem auxílio da magia —, mas, finalmente, o frio que fazia na rua e as súplicas dos filhos venceram, e ela se sentou de boa vontade no banco traseiro, entre Fred e Gui.
A viagem até o St. Mungus foi muito rápida porque quase não havia tráfego nas ruas. Um punhadinho de bruxas e bruxos andava furtivamente pela rua, de outro modo deserta, a caminho do hospital. Harry e os outros desceram do carro, e Mundungo virou a esquina para aguardá-los. Eles foram displicentemente até a vitrine onde havia o manequim vestido de náilon verde, então, um a um, atravessaram o vidro.
A recepção assumira um ar agradavelmente festivo: os globos de cristal que iluminavam o St. Mungus haviam sido coloridos de vermelho e dourado, transformando-se em gigantescas bolas natalinas iluminadas; ramos de azevinho emolduravam todas as portas; e árvores de Natal brancas cintilavam em todos os cantos, cobertas de neve mágica e pingentes de gelo, e no alto uma estrela dourada. O local estava menos cheio do que da última vez, embora, a meio caminho do quarto, Harry se visse empurrado para o lado por uma bruxa com uma laranjinha entalada na narina esquerda.
— Briga de família, eh? — disse a bruxa da recepção dando um sorriso pretensioso. — A senhora é a terceira que vejo hoje... Danos Causados por Feitiços, quarto andar.
Encontraram o Sr. Weasley recostado na cama com os restos do almoço de Natal em uma bandeja sobre o colo e uma expressão acanhada no rosto.
— Tudo bem, Arthur? — perguntou a Sra. Weasley, depois que todos o cumprimentaram e entregaram os presentes.
— Ótimo, ótimo — respondeu ele, um pouco animado demais. — Você... hum... não viu o Curandeiro Smethwyck, viu?
— Não — respondeu sua mulher desconfiada —, por quê?
— Nada, nada — tornou ele aereamente, começando a desembrulhar a pilha de presentes. — Bom, todos passaram um bom dia? Que foi que vocês ganharam de Natal? Ah, Harry... isto é absolutamente maravilhoso! — Acabara de abrir o presente de chaves de parafuso e fio de solda que o garoto lhe dera.
A Sra. Weasley não parecia inteiramente satisfeita com a resposta do marido. Quando ele se inclinou para apertar a mão de Harry, ela deu uma espiada nas ataduras sob sua camisa.
— Arthur, trocaram suas ataduras! Por que trocaram suas ataduras um dia antes, Arthur? Me disseram que não precisariam trocá-las até amanhã.
— Quê? — exclamou o Sr. Weasley, parecendo um tanto assustado e puxando as cobertas para cobrir o peito. — Não, não... não é nada... é... eu...
Ele pareceu esvaziar como um balão sob o olhar penetrante da Sra. Weasley.
— Bom... não se aborreça, Molly, mas Augusto Pye teve uma idéia... ele é o Curandeiro Estagiário, sabe, um rapaz ótimo e muito interessado em... hum... medicina complementar... quero dizer, alguns remédios tradicionais dos trouxas... eles chamam de pontos, Molly e dão muito certo nos... nos ferimentos dos trouxas...
A Sra. Weasley deixou escapar um grito agourento, algo entre um grito e um rosnado. Lupin se afastou da cama em direção ao lobisomem, que não tinha visitas e observava tristemente o grupo que rodeava o Sr. Weasley; Gui resmungou alguma coisa, pretextando ir apanhar uma xícara de chá, e Fred e Jorge se levantaram de um pulo para acompanhá-lo, sorrindo.
— Você está querendo me dizer — ela elevava a voz a cada palavra, aparentemente sem se dar conta de que seus acompanhantes estavam procurando um lugar para sumir — que anda se metendo com remédios de trouxas?
— Me metendo não, Molly, querida — disse ele em tom de súplica —, foi só... só uma coisa que Pye e eu quisemos experimentar... só que, infelizmente... bom, nesses tipos de ferimentos... não parece funcionar tão bem quanto esperávamos...
— O que significa...?
— Bom... bom, não sei se você sabe o que... o que são pontos.
— Parece que você andou tentando costurar a sua pele — disse a Sra. Weasley com uma risada seca —, mas nem você, Arthur, poderia ser tão burro...
— Acho que também vou querer uma xícara de chá — disse Harry ficando em pé.
Hermione, Rony e Gina quase correram para a porta com Harry. Quando a porta se fechou, eles ouviram a Sra. Weasley gritar: "COMO ASSIM, ESSA É A IDÉIA GERAL?"
— É típico do papai — disse Gina balançando a cabeça quando seguiam pelo corredor. — Pontos... é mole...
— Bem, sabe, eles funcionam com ferimentos não-mágicos — disse Hermione, querendo ser justa. — Suponho que alguma coisa no veneno daquela cobra os dissolve ou coisa parecida. Onde será que fica o salão de chá?
— Quinto andar — disse Harry, lembrando-se do letreiro atrás da bruxa na recepção.
Eles foram andando pelo corredor, passaram por portas duplas e descobriram uma escada desconjuntada ladeada de mais retratos de Curandeiros de cara cruel. Quando subiam, os vários Curandeiros chamaram os garotos, diagnosticando males estranhos e sugerindo remédios horríveis. Rony ficou seriamente ofendido quando um bruxo medieval gritou que ele tinha um caso grave de sarapintose.
— E o que é isso? — perguntou ele, zangado, enquanto o Curandeiro o perseguia por mais seis quadros, empurrando os ocupantes para o lado.
— É uma doença gravíssima da pele, jovem senhor, que vai deixá-lo marcado de bexigas e ainda mais horrendo do que já é...
— Olha só quem está falando! — exclamou Rony com as orelhas ficando vermelhas.
—... o único remédio é tirar o fígado de um sapo, atá-lo firmemente ao seu pescoço, e na lua cheia o jovem senhor fica nu em uma barrica de olhos de enguia...
— Eu não tenho sarapintose!
— Mas as feias marcas em seu rosto, jovem senhor...
— São sardas! — disse Rony furioso. — Agora volte para o seu quadro e me deixe em paz! — Ele se virou para os outros, que estavam decididos a se manter impassíveis.
— Que andar é esse?
— Acho que é o quinto — disse Hermione.
— Nam, é o quarto — contestou Harry —, mais um...
Mas, ao chegar ao patamar, ele parou de chofre, arregalando os olhos para uma pequena janela recortada nas portas duplas que marcavam o início de um corredor com o letreiro DANOS CAUSADOS POR FEITIÇOS. Um homem os espiava com o nariz colado no vidro. Tinha cabelos louros ondulados, olhos azul-vivos e um grande sorriso fixo que revelava dentes ofuscantemente brancos.
— Caracas! — exclamou Rony, olhando também para o homem.
— Ah, minha nossa — exclamou Hermione de repente, parecendo ofegar. — Prof. Lockhart!
O antigo professor de Defesa Contra as Artes das Trevas abriu as portas e se encaminhou para eles, usando um longo roupão lilás.
— Ora, alô, vocês aí! — chamou. — Imagino que queiram o meu autógrafo, não é?
— Ele não mudou nadinha! — murmurou Harry para Gina, que sorriu.
— Hum... como vai, professor? — falou Rony, se sentindo um pouco culpado.
Fora sua varinha defeituosa que afetara assim a memória de Lockhart, e ele fora parar no St. Mungus, mas como, na hora do acidente, o bruxo estivesse tentando apagar permanentemente as memórias dos garotos, a pena que Harry sentia era limitada.
— Estou muito bem, obrigado — respondeu o professor exuberante puxando do bolso uma pena de pavão já muito amassada. — Então, quantos autógrafos vocês querem? Agora aprendi a fazer escrita simultânea, sabem!
— Hum... no momento não queremos nenhum, obrigado — disse Rony, erguendo as sobrancelhas para Harry, que perguntou:
— Professor, o senhor pode ficar passeando pelos corredores? Não devia estar na enfermaria?
O sorriso desapareceu gradualmente do rosto de Lockhart. Por alguns momentos, ele mirou atentamente o rosto de Harry, depois disse:
— Nós já nos encontramos antes, não?
— Ah... encontramos. O senhor costumava ensinar Defesa Contra as Artes das Trevas em Hogwarts, lembra?
— Ensinar? — repetiu ele, parecendo ligeiramente perturbado. — Eu? Ensinando?
Então o sorriso reapareceu em seu rosto tão inesperadamente que assustou.
— Ensinei tudo que você sabe, espero, não? Bom, que tal aqueles autógrafos, então? Vamos dizer uma dúzia, para vocês poderem distribuir aos amiguinhos, e ninguém ser esquecido?
Mas nesse instante apareceu uma cabeça à porta no fim do corredor e uma voz chamou:
— Gilderoy, seu garoto travesso, onde é que você anda?
Uma Curandeira de aspecto maternal, usando uma guirlanda de pingentes de Natal nos cabelos, saiu depressa pelo corredor, sorrindo calorosamente para Harry e os outros.
— Ah, Gilderoy, você tem visitas! Que beleza, e no dia de Natal! Sabem, ele nunca recebe visitas, coitadinho, e não consigo imaginar por quê, ele é tão gracinha, não é?
— Estou dando autógrafos! — disse Gilderoy à Curandeira, com outro sorriso cintilante. — Eles querem muitos, e não aceitam não como resposta! Só espero que tenhamos fotografias suficientes!
— Escutem só ele — falou a Curandeira, segurando o braço de Lockhart e sorrindo carinhosamente para o bruxo como se ele fosse uma criança precoce de dois anos. — Ele era muito conhecido há alguns anos; temos esperanças de que esse gosto pelos autógrafos seja um sinal de que sua memória esteja voltando. Querem vir por aqui? Ele está em uma enfermaria fechada, sabem, deve ter escapulido enquanto eu entrava com os presentes de Natal, normalmente a porta fica trancada... não que ele seja perigoso! Mas — e ela baixou a voz e sussurrou: — é um perigo para ele mesmo, Deus o abençoe... não sabe quem é, entendem, sai por aí e não consegue se lembrar como voltar... que bom vocês terem vindo vê-lo.
— Ah — fez Rony, apontando inutilmente para o andar de cima —, na verdade, estávamos... ah...
Mas a Curandeira sorria para eles ansiosa, e o murmúrio com que Rony disse "tomar uma xícara de chá" se perdeu. Os garotos se entreolharam impotentes e acompanharam Lockhart e a Curandeira pelo corredor.
— Não vamos nos demorar — disse Rony em voz baixa.
A Curandeira apontou a varinha para a porta da Enfermaria Jano Thickey e murmurou: "Alorromora." A porta se abriu e ela entrou à frente, segurando com firmeza o braço de Gilderoy, e o acomodou em uma poltrona ao lado da cama.
— Esta é a nossa enfermaria para doenças prolongadas — informou a Harry, Hermione e Gina em voz baixa. — Para danos permanentes causados por feitiços. É claro que com tratamento intensivo, com poções e feitiços e um pouco de sorte, podemos obter alguma melhora. Gilderoy parece estar recuperando alguma consciência; e conseguimos uma melhora sensível no Sr. Bode, parece estar recuperando a capacidade de falar bastante bem, embora ainda não fale uma língua reconhecível. Bem, preciso terminar de entregar os presentes de Natal, vou deixar vocês conversarem.
Harry olhou ao seu redor. A enfermaria apresentava sinais inconfundíveis de ser uma casa permanente para seus pacientes. Havia um número maior de pertences pessoais perto das camas do que na enfermaria do Sr. Weasley; a parede em torno da cabeceira da cama de Gilderoy, por exemplo, estava empapelada com fotos dele, todas sorrindo com dentes à mostra, acenando para os recém-chegados. Ele autografara várias delas em uma caligrafia infantil e desajeitada. No momento em que a Curandeira o deixou na poltrona, Gilderoy puxou para perto uma pilha de fotos, apanhou uma pena e começou a assiná-las febrilmente.
— Você pode colocá-las no envelope — disse Gilderoy atirando no colo de Gina, uma a uma, as fotos autografadas, à medida que as assinava. — Não estou esquecido, sabe, não, ainda recebo muitas cartas de fãs... Gladis Gudgeon escreve semanalmente... eu só queria saber por quê. — Ele se calou, parecendo ligeiramente intrigado, em seguida sorriu e voltou a assinar as fotos com renovado vigor. — Suspeito que seja apenas pela minha beleza...
Um bruxo de rosto macilento e ar triste estava deitado na cama oposta contemplando fixamente o teto; resmungava sozinho e parecia inconsciente de tudo o mais. Duas camas adiante havia uma mulher com a cabeça inteira coberta de pêlos; Harry lembrou-se de uma coisa parecida que acontecera a Hermione no segundo ano de escola, embora, felizmente em seu caso, o dano não tivesse sido permanente. A um extremo da enfermaria, tinham corrido cortinas floridas em torno de duas camas para proporcionar aos ocupantes e suas visitas um pouco de privacidade.
— Tome, Agnes — disse a Curandeira animada à mulher de cara peluda, entregando-lhe uma pequena pilha de presentes de Natal. — Está vendo, você não foi esquecida. E seu filho mandou uma coruja avisando que vem visitá-la hoje à noite, então, é uma coisa boa, não é?
Agnes soltou vários latidos fortes.
— E, olhe só, Broderico, mandaram-lhe um vaso de planta e um lindo calendário com um hipogrifo diferente para cada mês; isso vai alegrar as coisas, não acha? — disse a Curandeira, e se aproximando do homem que resmungava, colocou uma planta muito feia, com longos tentáculos, sobre o seu armário de cabeceira, e pregou o calendário na parede com a varinha. — E... ah, Sra. Longbottom, a senhora já está indo embora?
Harry virou a cabeça depressa. As cortinas em torno das duas camas no extremo da enfermaria tinham sido abertas e dois visitantes vinham pelo corredor que dividia as camas; uma velha bruxa de aparência formidável, usando um longo vestido verde, uma pele de raposa comida de traças e um chapéu cônico enfeitado com o que era, sem erro, um urubu empalhado, e, acompanhando-a com uma expressão totalmente deprimida... Neville.
Com um clarão de instantânea compreensão, Harry percebeu quem deviam ser as pessoas nas camas do fim da enfermaria. Olhou para todos os lados aflito procurando uma maneira de distrair os outros para que Neville pudesse sair da enfermaria sem que o vissem nem lhe perguntassem nada, mas Rony também erguera a cabeça ao ouvir o nome "Longbottom", e, antes que Harry pudesse impedi-lo, chamou:
— Neville!
Neville se assustou e se encolheu como se uma bala tivesse acabado de passar por ele de raspão.
— Somos nós, Neville! — disse Rony animado, levantando-se. — Você viu...? O Lockhart está aqui! Quem é que você estava visitando?
— Seus amigos, Neville, querido? — perguntou gentilmente a avó do garoto, examinando os três.
Neville pareceu desejar que estivesse em qualquer outro lugar do mundo, menos ali. Um colorido vermelho-arroxeado foi subindo pelo seu rosto gorducho, e ele tentou evitar fazer contato visual com qualquer um deles.
— Ah, sim — disse a avó, fitando Harry e estendendo a mão enrugada que lembrava uma garra para ele apertá-la. — Sim, sim, eu sei quem você é, é claro, Neville fala muito bem de você.
— Hum... obrigado — disse Harry apertando a mão estendida. Neville não ergueu os olhos, fixava os próprios pés, o rubor em seu rosto aumentando sem parar.
— E vocês dois são obviamente os Weasley — continuou a Sra. Longbottom, oferecendo regiamente a mão a Rony e depois à Gina.
— Eu conheço seus pais... não muito bem, é claro... são boa gente, boa gente... e você deve ser Hermione Granger?
Hermione parecia muito surpresa que a Sra. Longbottom soubesse seu nome, mas apertou-lhe a mão assim mesmo.
— Neville me contou tudo sobre você. Ajudou-o a sair de alguns apuros, não foi? Ele é um bom menino — disse lançando ao neto um olhar de severa apreciação do alto do nariz —, mas receio dizer que não tem o talento do pai. — E ela indicou com um aceno brusco de cabeça as duas camas no fim da enfermaria, fazendo o urubu empalhado no chapéu tremer assustadoramente.
— Quê? — exclamou Rony, parecendo admirado. (Harry queria pisar o pé do amigo, mas isso é muito mais difícil de fazer sem ninguém notar quando se está usando jeans em vez de vestes.) — É o seu pai que está ali, Neville?
— Que é isso! — exclamou a Sra. Longbottom com severidade. — Você não contou aos seus amigos o que aconteceu com seus pais, Neville?
Neville deu um suspiro profundo, olhou para o teto e balançou a cabeça.
Harry não se lembrava de ter sentido mais pena de alguém, mas não conseguia pensar em algum jeito para ajudar Neville a sair daquela situação.
— Ora, não é nenhuma vergonha! — disse a Sra. Longbottom zangada. —
Você devia sentir orgulho, Neville, orgulho! Eles não deram a saúde e a sanidade para seu único filho ter vergonha deles, entende!
— Eu não sinto vergonha — explicou Neville com a voz fraquinha, ainda olhando para qualquer lado menos para Harry e os outros. Rony agora estava nas pontas dos pés para espiar os pacientes nas duas camas.
— Bom, você tem uma maneira engraçada de demonstrar! — disse a Sra. Longbottom. — Meu filho e a mulher — continuou ela virando-se com arrogância para Harry, Rony, Hermione e Gina — foram torturados até a insanidade pelos seguidores de Você-Sabe-Quem.
Hermione e Gina levaram as mãos à boca. Rony parou de esticar o pescoço para dar uma espiada nos pais de Neville, e pareceu mortificado.
— Eles eram aurores, sabem, e muito respeitados na comunidade bruxa. Excepcionalmente talentosos, os dois. Eu... sim, Alice, querida, que foi? A mãe de Neville viera andando lentamente pela enfermaria de camisola. Já não tinha o rosto cheio e feliz que Harry vira na velha fotografia de Moody com os participantes da Ordem da Fênix inicial. Seu rosto estava fino e cansado agora, os olhos pareciam grandes demais e seus cabelos tinham ficado brancos, ralos e sem vida. Ela não parecia querer falar, ou talvez não fosse capaz, mas fez gestos tímidos em direção a Neville, segurando alguma coisa na mão estendida.
— Outra vez? — disse a Sra. Longbottom, parecendo um tantinho cansada. — Muito bem, Alice querida, muito bem... Neville, apanhe, o que quer que seja. Mas Neville já esticara a mão, em que a mãe deixou cair uma embalagem de Chicles de Baba e Bola.
— Muito bem, querida — tornou a avó de Neville num tom falsamente animado, dando palmadinhas no ombro da mãe do garoto.
Mas Neville disse baixinho:
— Obrigado, mamãe.
A mãe voltou vacilante para o fundo da enfermaria, cantarolando para si mesma. Neville olhou para os outros, uma expressão de rebeldia no rosto, como se os desafiasse a rir, mas Harry achava que nunca vira nada menos engraçado na vida.
— Bom, é melhor irmos andando — suspirou a Sra. Longbottom, calçando longas luvas verdes. — Foi um prazer conhecer vocês. Neville, ponha a embalagem na cesta, a esta altura ela já deve ter-lhe dado o suficiente para empapelar o seu quarto.
Mas, quando saíram, Harry tinha certeza de ter visto Neville guardar a embalagem do chicle no bolso. A porta se fechou.
— Eu nunca soube — disse Hermione com cara de choro.
— Nem eu — disse Rony com a voz meio rouca.
— Nem eu — sussurrou Gina. Todos olharam para Harry.
— Eu sabia — confirmou ele abatido. — Dumbledore me contou, mas eu prometi não repetir para ninguém... foi por isso que Belatriz Lestrange foi mandada para Azkaban, por usar a Maldição Cruciatus nos pais de Neville até eles enlouquecerem.
— Belatriz Lestrange fez isso? — sussurrou Hermione, horrorizada. — Aquela mulher de quem o Monstro guarda a fotografia na toca?
Fez-se um longo silêncio, interrompido pela voz zangada de Lockhart.
— Olhem, eu não aprendi escrita simultânea à toa, sabem!

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