Posted by : Unknown junho 04, 2014

Capítulo 21


Hermione voltou à cabana de Hagrid no domingo pela manhã, avançando com dificuldade pela neve de meio metro de altura. Harry e Rony queriam acompanhá-la, mas a montanha de deveres de casa tornara a atingir uma altura alarmante, por isso, contrariados, eles ficaram na sala comunal, tentando ignorar os gritos alegres que chegavam lá de fora, onde os estudantes se divertiam patinando no lago gelado, andando de tobogã e, o que era pior, enfeitiçando bolas de neve para voar até a Torre da Grifinória e bater com força nas janelas.
— Oi! — berrou Rony, finalmente perdendo a paciência e metendo a cabeça para fora da janela: — Sou monitor, e se mais uma bola de neve bater nesta janela... AI!
Ele recuou com um movimento brusco, o rosto coberto de neve.
— É o Fred e o Jorge — comentou com amargura, batendo a janela. — Babacas...
Hermione voltou da casa de Hagrid pouco antes do almoço, tremendo um pouco de frio, as vestes úmidas até os joelhos.
— Então? — perguntou Rony, erguendo a cabeça quando ela entrou. — Conseguiu planejar todas as aulas com ele?
— Bom, eu tentei — respondeu ela desanimada, afundando na poltrona ao lado de Harry. Puxou, então, a varinha e, com um floreio, fez sair ar quente da ponta; em seguida apontou-a para as vestes, que começaram a desprender vapor à medida que foram secando. — Ele nem estava lá quando cheguei, bati no mínimo meia hora. E quando saiu mancando da Floresta...
Harry gemeu. A Floresta Proibida estava apinhada com o tipo de animais com maior probabilidade de causar a demissão de Hagrid.
— Que é que ele está criando lá? Ele disse?
— Não — respondeu Hermione infeliz. — Disse que quer fazer surpresa.
Tentei explicar o papel da Umbridge, mas ele simplesmente não entende. Repetiu o tempo todo que ninguém com o juízo perfeito iria preferir estudar ouriços em vez de quimeras... ah, não acho que ele tenha uma quimera — acrescentou ao ver a expressão de espanto nos rostos de Harry e Rony. — Mas não é por falta de tentar, pelo comentário que fez sobre a dificuldade de obter ovos. Não sei quantas vezes eu repeti que ele faria melhor se seguisse o programa da Grubbly-Plank, sinceramente acho que não ouviu nem metade do que eu disse. E está meio estranho, sabe? Continua sem querer dizer onde arranjou aqueles ferimentos.
O reaparecimento de Hagrid à mesa dos professores na manhã do dia seguinte não foi recebido com entusiasmo por todos os alunos. Alguns, como Fred, Jorge e Lino, gritaram de alegria e saíram correndo pelo corredor entre as mesas da Grifinória e Lufa-Lufa para apertar sua mão enorme; outros, como Parvati e Lilá, trocaram olhares sombrios e balançaram a cabeça. Harry sabia que muitos preferiam as aulas da Profª Grubbly-Plank, e o pior é que uma pequena parte dele, imparcial, sabia que os colegas tinham boas razões: para Grubbly-Plank uma aula interessante era aquela em que ninguém corria o risco de ter a cabeça arrancada.
Foi com uma certa apreensão que os três amigos se encaminharam para a aula de Hagrid na terça-feira, bem agasalhados contra o frio. Harry estava preocupado, não somente com o que Hagrid decidira ensiná-los, mas também com o comportamento do restante da turma, particularmente o de Malfoy e seus comparsas, se Umbridge estivesse observando.
No entanto, a Alta Inquisidora não estava visível enquanto venciam com dificuldade a neve em direção a Hagrid, que os esperava na orla da Floresta.
Sua aparência não tranqüilizava; os hematomas que estavam roxos no sábado à noite agora estavam matizados de verde e amarelo, e alguns dos seus cortes ainda pareciam sangrar. Harry não conseguia entender: será que Hagrid fora atacado por alguma criatura cujo veneno impedia os ferimentos de sararem?
E, como para completar sua figura sinistra, Hagrid carregava por cima do ombro uma coisa que parecia a metade de uma vaca morta.
— Vamos trabalhar aqui hoje! — anunciou alegremente aos estudantes que se aproximavam, indicando com a cabeça as árvores escuras às suas costas. — Um pouco mais protegidos! De qualquer maneira, eles preferem o escuro.
— Que é que prefere o escuro? — Harry ouviu Malfoy perguntar rispidamente a Crabbe e Goyle, com um indício de pânico na voz. — Que foi que ele disse que prefere o escuro: vocês ouviram?
Harry lembrou-se da única outra ocasião em que Malfoy entrara na Floresta; tampouco fora muito corajoso então. Ele sorriu por dentro; depois do jogo de quadribol achava ótimo qualquer coisa que causasse mal-estar a Malfoy.
— Prontos? — perguntou Hagrid animado, olhando para os alunos. — Bom, então, estive guardando uma viagem à Floresta para o seu quinto ano. Pensei em irmos ver os bichos em seu hábitat natural. Agora, o que vamos estudar hoje é bem raro. Calculo que eu seja a única pessoa na Grã-Bretanha que conseguiu domesticá-los.
— Você tem mesmo certeza de que eles estão domesticados? — disse Malfoy, o pânico em sua voz era ainda mais pronunciado. — Não seria a primeira vez que você traz bichos selvagens para a aula, não é?
Os alunos da Sonserina murmuravam concordando, e alguns da Grifinória também pareciam achar que Malfoy tinha uma certa razão.
— Claro que estão domesticados — garantiu Hagrid, fechando a cara e erguendo um pouco a vaca morta para ajeitá-la no ombro.
— Então, que foi que aconteceu com o seu rosto? — quis saber Malfoy.
— Cuide da sua vida! — disse Hagrid, zangado. — Agora, se acabaram de fazer perguntas bobas, me sigam!
Ele se virou e entrou na Floresta Proibida. Ninguém parecia muito disposto a segui-lo. Harry olhou para Rony e Hermione, que suspiraram, mas concordaram com a cabeça, e os três entraram atrás de Hagrid, liderando o resto da turma.
Caminharam uns dez minutos até chegar a um ponto em que as árvores cresciam tão juntas que era sombrio como ao anoitecer, e não havia neve no chão. Com um gemido, Hagrid depositou a metade da vaca no chão, recuou e se virou para olhar os alunos, a maioria dos quais se esgueirava de árvore em árvore em sua direção, espiando para os lados nervosamente como se esperassem ser atacados a qualquer momento.
— Cheguem mais, cheguem mais — encorajou-os Hagrid. — Agora eles vão ser atraídos pelo cheiro da carne, mas de qualquer maneira vou chamá-los, porque vão gostar de saber que sou eu.
Ele se virou, sacudiu a cabeça desgrenhada para tirar os cabelos do rosto e soltou um grito estranho e agudo que ecoou por entre as árvores escuras como o chamado de uma ave monstruosa. Ninguém riu: a maioria estava apavorada demais para emitir qualquer som.
Hagrid deu novo grito agudo. Passou-se um minuto em que a turma continuou a espiar nervosamente sobre os ombros e por trás das árvores para avistar o que quer que estivesse a caminho. Então, quando Hagrid jogou os cabelos para trás mais uma vez e encheu o enorme peito, Harry cutucou Rony e apontou para o espaço vazio entre dois teixos nodosos.
Dois olhos vidrados, brancos, brilhantes, foram crescendo na penumbra, depois surgiram a cara draconina, o pescoço e, em seguida, o corpo esquelético de um enorme cavalo alado negro emergiu da escuridão. O animal correu os olhos pela turma por alguns segundos, balançando a longa cauda negra, então começou a arrancar pedaços da vaca morta com seus caninos pontiagudos.
Harry foi invadido por uma grande onda de alívio. Ali, finalmente, estava a prova de que não imaginara esses bichos, de que eram reais: Hagrid conhecia a existência deles também. Olhou animado para Rony, mas o amigo continuava a espiar entre as árvores e, passados alguns segundos, cochichou:
— Por que é que Hagrid não chama outra vez?
A maioria dos outros alunos expressava no rosto uma ansiedade confusa e nervosa, como a de Rony, e continuava a olhar para todos os lados, exceto para o cavalo, a pouco mais de um metro deles. Havia apenas mais duas pessoas que pareciam capazes de vê-los: um garoto magricela da Sonserina, parado logo atrás de Goyle, que observava o cavalo comer com uma cara de intenso nojo; e Neville, cujo olhar acompanhava o balanço da longa cauda negra.
— Ah, e aí vem mais um! — anunciou Hagrid orgulhoso, quando viu aparecer do meio das árvores escuras um segundo cavalo, que fechou as asas contra o corpo e mergulhou a cabeça para devorar a carne.
— Agora... levantem as mãos... quem consegue vê-los?
Imensamente satisfeito de que finalmente fosse entender o mistério desses cavalos, Harry ergueu a mão. Hagrid fez um aceno para ele.
— Sim... sim, eu sabia que você seria capaz de vê-los — disse sério. — E você também, Neville, é? E...
— Com licença — perguntou Malfoy com a voz desdenhosa —, mas que é exatamente que eu devia estar vendo?
Em resposta, Hagrid apontou para a carcaça da vaca no chão. A turma inteira contemplou-a com espanto por alguns segundos, então várias pessoas exclamaram, e Parvati soltou um grito agudo. Harry entendeu por quê: os pedaços de carne se soltando dos ossos e desaparecendo no ar deviam parecer realmente estranhos.
— Que é que está fazendo isso? — perguntou Parvati aterrorizada, recuando para trás da árvore mais próxima. — Que é que está comendo a vaca?
— Testrálios — disse Hagrid, orgulhoso, e Hermione soltou em voz baixa um "Ah!" de compreensão ao ombro de Harry. — Hogwarts tem um rebanho deles aqui na Floresta. Agora, quem sabe...?
— Mas eles realmente trazem má sorte! — interrompeu Parvati, parecendo assustada. — Dizem que dão todo o tipo de azar às pessoas que os vêem. A Profª Trelawney me contou uma vez...
— Não, não, não — contestou Hagrid rindo —, isso é pura superstição, isto é, eles são muito inteligentes e úteis! É claro que esses daqui não trabalham muito, só puxam as carruagens da escola, a não ser que Dumbledore vá fazer uma viagem longa e não queira aparatar... e aí vêm mais dois, olhem...
Mais dois cavalos saíram silenciosamente de trás das árvores, um deles passou muito perto de Parvati, que estremeceu e se encostou mais perto da árvore, dizendo:
— Senti alguma coisa, acho que está perto de mim!
— Não se preocupe, ele não vai machucar você — disse Hagrid paciente. — Certo, agora, quem é capaz de me dizer por que alguns de vocês vêem os Testrálios e outros não?
Hermione ergueu a mão.
— Diga, então — pediu Hagrid, sorrindo para a garota.
— Só podem ver os Testrálios — respondeu ela — as pessoas que já viram a morte.
— Exatamente — disse Hagrid, muito solene —, dez pontos para a Grifinória. Agora, os Testrálios...
— Hem, hem.
A Profª Umbridge chegara. Estava a alguns passos de Harry, usando novamente a capa e o chapéu verdes, a prancheta à mão. Hagrid, que nunca ouvira o pigarro fingido da Umbridge, olhou com certa preocupação para o Testrálio mais próximo, evidentemente pensando que ele produzira o som.
— Hem, hem.
— Ah, olá! — disse Hagrid sorrindo, ao localizar a origem do ruído.
— Você recebeu o bilhete que mandei à sua cabana hoje pela manhã? — perguntou Umbridge, no mesmo tom alto e pausado que usara com ele anteriormente, como se estivesse se dirigindo a alguém ao mesmo tempo estrangeiro e retardado. — Avisando que eu viria inspecionar sua aula?
— Ah, sim – respondeu Hagrid animado. — Fico satisfeito que tenha encontrado o local sem dificuldade! Bom, como pode ver ou, não sei, será que a senhora pode? Hoje estamos estudando Testrálios...
— Desculpe? — disse a Profª Umbridge em voz alta, levando a mão em concha à orelha e franzindo a testa: — Que foi que você disse?
Hagrid pareceu um pouco confuso.
— Ah... Testrálios! — disse, elevando a voz. — Cavalos alados... hum... grandes, sabe!
Ele agitou os braços gigantescos, esperançoso. A Profª Umbridge ergueu as sobrancelhas para ele e resmungou alguma coisa enquanto anotava na prancheta: Tem... de... recorrer... a... grosseira... gesticulação.
— Bom... em todo o caso... — disse Hagrid voltando-se para a turma e parecendo ligeiramente atrapalhado — hum... que é que eu ia dizendo?
— Parece... esquecer... o... que... estava dizendo — murmurou Umbridge, suficientemente alto para todos ouvirem. Draco Malfoy parecia sentir que o Natal chegara um mês antes; Hermione, por outro lado, ficara escarlate de fúria reprimida.
— Ah, sim — disse Hagrid, lançando um olhar preocupado à prancheta de Umbridge, mas prosseguindo valorosamente. — Eu ia contar a vocês como foi que formamos um rebanho. Então, começamos com um macho e cinco fêmeas.
Este — ele deu uma palmadinha carinhosa no primeiro cavalo que aparecera —, de nome Tenebrus, treva, o meu grande favorito, foi o primeiro a nascer na Floresta...
— Você tem ciência — disse Umbridge em voz alta, interrompendo-o — que o
Ministério da Magia classificou os Testrálios como "perigosos"?
O ânimo de Harry afundou como uma pedra, mas Hagrid meramente deu uma risadinha.
— Os Testrálios não são perigosos! Tudo bem, são capazes de tirar um pedaço de alguém que realmente os importunar...
— Manifesta... prazer... à... idéia... de... violência — murmurou Umbridge, registrando em sua prancheta.
— Ora... vamos! — exclamou Hagrid, parecendo um pouco ansioso agora. — Quero dizer, um cão morde se a pessoa o açula, não?... mas os Testrálios somente ganharam má reputação por causa dessa história de morte... as pessoas costumavam pensar que traziam mau agouro, não é mesmo? Simplesmente não entendiam, não é?
Umbridge não respondeu; terminou de fazer a última anotação, então olhou para Hagrid e disse, mais uma vez alteando a voz e enunciando as palavras devagar:
— Por favor, continue sua aula como sempre, eu vou andar um pouco – ela imitou uma pessoa andando (Malfoy e Pansy Parkinson tiveram acessos silenciosos de riso) entre os alunos (ela apontou cada integrante da turma) e fazer perguntas. — Ela apontou para a boca indicando o ato de falar.
Hagrid arregalou os olhos para ela, visivelmente incapaz de compreender por que estava agindo como se não soubesse inglês normal. Hermione agora tinha lágrimas de fúria nos olhos.
— Sua megera, sua megera maligna! — sussurrou ela, enquanto Umbridge andava em direção a Pansy Parkinson. — Eu sei o que você está fazendo, sua bruxa horrível, pervertida, malévola...
— Hum... em todo o caso — disse Hagrid, tentando nitidamente recuperar o fio de sua aula —, então... os Testrálios. Sim. Bom, há muitas coisas boas sobre eles...
— Você acha — perguntou a Profª Umbridge a Pansy com voz ressonante — que é capaz de entender o Prof. Hagrid quando ele fala?
Tal como Hermione, Pansy tinha lágrimas nos olhos, mas eram lágrimas de riso, na verdade, e sua resposta foi quase incoerente na tentativa de conter o riso.
— Não... porque... bom... muitas vezes... parecem grunhidos.
Umbridge registrou a resposta em sua prancheta. As poucas partes sãs do rosto de Hagrid coraram, mas ele tentou agir como se não tivesse ouvido a resposta da aluna.
— Hum... sim... coisas boas sobre os Testrálios. Uma vez que sejam domesticados, como este rebanho, as pessoas nunca mais se perderão. Eles têm um espantoso senso de direção, é só dizer aonde se quer ir...
— Supondo que eles consigam entender você, naturalmente — disse Malfoy alto, e Pansy desatou em um novo acesso de riso. A Profª Umbridge sorriu indulgentemente para os dois e se dirigiu a Neville.
— Você consegue ver os Testrálios, Longbottom, verdade?
Neville assentiu com a cabeça.
— Quem foi que você viu morrer? — perguntou ela, seu tom indiferente.
— Meu... meu avô — disse Neville.
— E o que acha deles? — perguntou a professora, indicando com a mão curta e grossa os cavalos, que a essa altura tinham limpado uma boa parte da carcaça até os ossos.
— Hum — disse Neville nervoso, lançando um olhar a Hagrid. — Bom... eles... aah... tudo bem.
— Os... alunos... se... sentem... demasiado... intimidados... para... admitir... que... têm... medo — murmurou Umbridge, fazendo mais uma anotação na prancheta.
— Não! — protestou Neville, parecendo aborrecido. — Não, não tenho medo deles!
— Está tudo bem — disse Umbridge, lhe dando palmadinhas no ombro, com o que ela pretendia que fosse um sorriso de compreensão, embora parecesse a Harry mais um esgar maldoso. — Bom, Hagrid — Umbridge tornou a olhar para ele, falando mais uma vez alta e lentamente: — Acho que tenho o suficiente para trabalhar. Você receberá (ela imitou o gesto de apanhar alguma coisa a sua frente) os resultados de sua inspeção (ela apontou para a prancheta) dentro de dez dias. — Ergueu os dez dedos curtos das mãos, e, com o sorriso mais largo e bufonídeo que já dera sob aquele gorro verde, ela saiu apressada, deixando Malfoy e Pansy Parkinson tendo acessos de risos,
Hermione tremendo de fúria e Neville parecendo confuso e aborrecido.
— Aquela gárgula velha, nojenta, mentirosa, deturpadora! — explodiu Hermione meia hora depois, quando voltavam ao castelo pelo caminho que haviam aberto na neve mais cedo. — Vocês estão vendo o que ela está tramando? É aquele preconceito contra mestiços outra vez: está tentando pintar Hagrid como uma espécie de trasgo retardado, só porque a mãe dele era giganta, e, ah, não é justo, na realidade nem foi uma aula ruim, quero dizer, tudo bem, se tivessem sido explosivins, mas os Testrálios são bem aceitáveis: de fato, tratando-se de Hagrid, são realmente ótimos!
— A Umbridge disse que eles são perigosos — lembrou Rony.
— Bom, é como disse o Hagrid, eles sabem se cuidar sozinhos — retrucou
Hermione impaciente —, e suponho que uma professora como a Grubbly-Plank normalmente não nos apresentaria a eles antes dos N.I.E.M.s, mas, bom, eles são muito interessantes, não acharam? Como tem gente que pode vê-los e gente que não pode! Eu gostaria de poder.
— Gostaria? — perguntou Harry calmamente.
De repente ela fez uma cara de horror.
— Ah, Harry... desculpe... não, claro que não... foi realmente uma burrice dizer isso.
— Tudo bem — disse ele depressa —, não se preocupe.
— É de surpreender que tanta gente pudesse vê-los — comentou Rony. — Três em uma turma...
— É, Weasley, nós estávamos mesmo imaginando — comentou uma voz maliciosa. Sem que fossem pressentidos, Malfoy, Crabbe e Goyle vinham logo atrás, o ruído dos seus passos abafado pela neve. — Você acha que se visse alguém sentindo o cheiro deles você conseguiria ver melhor a goles?
Ele, Crabbe e Goyle deram grandes gargalhadas ao ultrapassá-los a caminho do castelo, depois começaram a cantar "Weasley é o nosso rei". As orelhas de Rony ficaram vermelho vivo.
— Não ligue para eles, não ligue — disse Hermione, puxando a varinha e executando o feitiço para produzir ar quente e assim poder abrir mais facilmente um caminho pela neve intacta entre eles e as estufas.
Dezembro chegou, trazendo mais neve e uma decidida avalanche de deveres de casa para os quintanistas. As tarefas de monitor de Rony e Hermione também se tornaram mais pesadas com a aproximação do Natal. Eles foram chamados para supervisar a decoração do castelo ("Tenta pendurar festões com o Pirraça segurando a outra ponta e tentando estrangular você com ela", disse Rony), tomar conta dos alunos de primeiro e segundo anos que passam os intervalos das aulas dentro do castelo por causa do frio cortante ("E eles são uns melequentos atrevidos, sabe, decididamente não éramos mal-educados assim quando freqüentávamos o primeiro ano", comentou Rony), e patrulhar os corredores dividindo turnos com Argo Filch, que suspeitava que o espírito natalino pudesse se manifestar numa eclosão de duelos de bruxos ("Ele tem bosta nos miolos", disse Rony furioso). Enfim, andavam tão ocupados que Hermione precisou parar de tricotar gorros para elfos e ficou preocupada que só lhe sobrassem três.
— Todos esses elfos, coitados, que eu não pude liberar ainda, terei de passar o Natal aqui porque não há gorros suficientes!
Harry, que não tivera coragem de contar a ela que Dobby estava levando tudo, curvou-se ainda mais para o seu dever de História da Magia. Em todo o caso, ele não queria pensar no Natal. Pela primeira vez em sua carreira escolar, queria muito passar as festas longe de Hogwarts. Entre a proibição de jogar quadribol e a preocupação se Hagrid seria ou não posto em observação, ele sentia muita raiva da escola naquele momento. A única coisa que antegozava eram os encontros da AD, e estes teriam de ser interrompidos durante as festas, porque quase toda a turma iria passar as férias com a família. Hermione ia esquiar com os pais, uma coisa que Rony achava muito engraçado, pois nunca ouvira falar de trouxas que atavam pranchas finas de madeira aos pés para deslizar montanha abaixo. Rony ia para A Toca. Harry amargara muitos dias de inveja até Rony dizer em resposta à sua pergunta como iria para casa passar o Natal: "Mas você também vai! Eu não falei? Já faz semanas que mamãe me escreveu dizendo para convidar você!"
Hermione ergueu os olhos para o teto, mas o ânimo de Harry foi ao céu: achava que o Natal na Toca era realmente maravilhoso, embora ligeiramente prejudicado pelo remorso de que não fosse poder passar as festas com Sirius.
Pôs-se a imaginar se não seria possível convencer a Sra. Weasley a convidar seu padrinho para passá-las juntos. Ainda que duvidasse de que Dumbledore fosse permitir que Sirius deixasse o largo Grimmauld, ele não podia deixar de pensar que a Sra. Weasley talvez não o quisesse; os dois viviam se desentendendo. Sirius não entrara em contato com Harry desde sua última aparição no fogo, e, embora o garoto soubesse que com a Umbridge em constante vigilância seria insensato tentar se comunicar, não lhe agradava imaginar Sirius sozinho na antiga casa da mãe, talvez estourando um solitário saquinho surpresa com o Monstro.
Harry chegou cedo à Sala Precisa para a última reunião antes das festas, e ficou contente de ter feito isso, porque quando os archotes se acenderam ele viu que Dobby se encarregara de decorar a sala para o Natal. Sabia que fora o elfo, porque ninguém mais penduraria cem bolas douradas no teto, todas com o rosto de Harry Potter e a legenda "HARRY CHRISTMAS!".
Harry tinha acabado de baixar a última delas quando a porta se entreabriu e Luna Lovegood entrou, com a cara de sonhadora de sempre.
— Olá — disse distante, olhando para o que restara das decorações.
— Estão bonitas, foi você quem as pendurou?
— Não, foi Dobby o elfo doméstico.
— Visgo — disse ela sonhadoramente, apontando para um cacho de frutinhos brancos pendurados quase em cima da cabeça de Harry. Ele saltou para longe dos frutos. — Bem pensado — disse Luna muito séria.
— Muitas vezes está infestado de Narguilés.
Harry foi salvo da necessidade de perguntar o que eram Narguilés pela chegada de Angelina, Katie e Alicia. As três estavam sem fôlego e pareciam sentir muito frio.
— Bom — disse Angelina maquinalmente, tirando a capa e atirando-a a um canto —, finalmente conseguimos substituir você.
— Me substituir? — perguntou Harry sem entender.
— Você, Fred e Jorge — disse ela impaciente. — Temos um novo apanhador.
— Quem? — perguntou Harry depressa.
— Gina Weasley — informou Katie.
Harry boquiabriu-se.
— É, eu sei — disse Angelina, puxando a varinha e flexionando o braço —, mas ela é realmente boa. Não se compara a você, é claro — acrescentou amarrando a cara —, mas como não podemos ter você...
Harry engoliu a resposta que gostaria de dar; será que ela imaginava por um segundo sequer que ele não lamentava sua expulsão da equipe cem vezes mais do que ela?
— E os batedores? — perguntou, tentando manter a voz calma.
— André Kirke — respondeu Alicia, sem entusiasmo — e Juca Sloper. Nenhum dos dois é genial, mas comparados aos outros que apareceram...
A chegada de Rony, Hermione e Neville encerrou essa conversa deprimente, e cinco minutos depois a sala estava bastante cheia para impedir que Harry visse os eloqüentes olhares de censura de Angelina.
— O.k. — disse ele, chamando todos à ordem. — Achei que hoje deveríamos repassar o que já fizemos até agora, porque é a última reunião antes das férias e não tem sentido começar nada novo antes de uma pausa de três semanas...
— Não vamos fazer nada novo? — exclamou Zacarias, resmungando, insatisfeito, suficientemente alto para ser ouvido por toda a sala. — Se eu soubesse nem teria vindo.
— Então todos lamentamos muito que Harry não tenha lhe avisado — retrucou Fred em voz alta.
Várias pessoas abafaram risinhos. Harry viu Cho rindo, e teve a sensação já conhecida de que seu estômago estava despencando, como se tivesse pulado sem querer um degrau de escada.
—... podemos praticar aos pares — continuou Harry. — Vamos começar com a
Azaração de Impedimento durante dez minutos, então podemos apanhar as almofadas e experimentar o Feitiço Estuporante mais uma vez.
Todos se dividiram obedientemente, Harry fez par com Neville como sempre.
Logo a sala se encheu de gritos intermitentes de "Impedimenta!". As pessoas ficavam paralisadas por mais ou menos um minuto, enquanto o parceiro olhava a esmo pela sala, observando o trabalho dos outros pares, depois recuperava os movimentos e era sua vez de azarar.
Neville estava irreconhecível, tal o seu progresso. Depois de ter se recuperado três vezes seguidas, Harry mandou Neville se reunir a Rony e Hermione para poder andar pela sala e observar os outros. Quando passou, Cho deu-lhe um grande sorriso; ele resistiu à tentação de passar mais vezes por ela.
Transcorridos os dez minutos da Azaração de Impedimento, eles espalharam as almofadas pelo chão e começaram a praticar mais uma vez o Estuporante. O espaço era realmente muito limitado para permitir que todos trabalhassem ao mesmo tempo; metade do grupo observava a outra metade por alguns minutos, depois se revezavam.
Harry sentiu-se decididamente orgulhoso ao observar o grupo. É verdade que Neville estuporou Padma Patil em vez de Dino, a quem estava visando, mas errou por muito menos do que antes, e todos os outros tinham feito enormes progressos.
Ao final de uma hora, Harry anunciou um intervalo.
— Vocês estão ficando ótimos — disse sorrindo. — Quando voltarmos das férias, poderemos começar com os feitiços mais importantes, talvez até com o Patrono.
Ouviram-se murmúrios de excitação. A sala começou a se esvaziar, como sempre aos pares e trios; a maioria desejou a Harry um "Feliz Natal" ao sair.
Sentindo-se animado, ele recolheu as almofadas com Rony e Hermione, e empilhou-as em ordem. Os dois saíram antes; ele se demorou mais um pouco, porque Cho ainda não saíra, e tinha esperança de ouvir dela votos de boasfestas.
— Não, pode ir andando — ouviu-a dizer à amiga Marieta, e seu coração deu um salto que pareceu empurrá-lo para a região do pomo-de-adão.
Ele fingiu estar arrumando a pilha de almofadas. Tinha certeza de que estavam completamente a sós agora, e esperava que ela falasse. Em vez disso, ouviu uma fungada sentida.
Ele se virou e viu Cho parada no meio da sala, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Qu...?
Não soube o que fazer. Ela simplesmente estava parada ali, chorando em silêncio.
— Que foi? — perguntou com a voz fraca.
Cho balançou a cabeça e enxugou os olhos na manga.
— Desculpe... — disse com a voz pastosa. — Imagino que... é só que... aprendendo tudo isso... me deixa... pensando que se... se ele soubesse tudo isso... talvez ainda estivesse vivo.
O coração de Harry afundou, saiu da posição normal e foi se alojar em algum ponto próximo ao umbigo. Devia ter imaginado. Ela queria conversar sobre Cedrico.
— Ele sabia tudo isso — disse Harry pesaroso. — Era realmente bom, ou jamais teria chegado à metade daquele labirinto. Mas se Voldemort de fato quer matar uma pessoa, ela não tem a menor chance.
Cho soluçou ao ouvir o nome de Voldemort, mas encarou Harry sem piscar.
— Você sobreviveu quando era só um bebê — disse baixinho.
— Foi — disse Harry preocupado, encaminhando-se para a porta. — Eu não sei por quê, nem ninguém sabe, então não é nada de que eu possa me orgulhar.
— Ah, não comece! — disse Cho, voltando a chorar. — Realmente me desculpe por me comover assim... eu não tive intenção...
E tornou a soluçar. Era muito bonita até quando os olhos estavam vermelhos e inchados. Harry se sentiu completamente infeliz. Teria ficado muito contente com um simples "Feliz Natal".
— Sei que deve ser horrível para você — disse, enxugando os olhos na manga. — Mencionar o Cedrico, quando você o viu morrer... Suponho que queira esquecer tudo.
Harry não respondeu; era verdade, mas se sentiria desalmado se dissesse isso.
— Você é um professor realmente bom, sabe — disse Cho, com um sorriso lacrimoso. — Nunca consegui estuporar ninguém antes.
— Obrigado — disse Harry sem jeito.
Eles se olharam por um longo momento. Harry sentiu um desejo ardente de correr pela sala e, ao mesmo tempo, uma completa incapacidade de mover os pés.
— Azevinho — disse Cho em voz baixa, apontando para o teto acima da cabeça dele.
— É — disse Harry. Sua boca estava muito seca. — Mas provavelmente deve estar cheio de Narguilés.
— Que são Narguilés?
— Não faço a menor idéia — disse Harry. Ela foi chegando mais perto. Seu cérebro parecia ter sido estuporado. — Você teria de perguntar a Di-lua. A Luna, quero dizer.
Cho fez um som engraçado entre um soluço e uma risada. Estava mais perto agora. Ele poderia ter contado as sardas no nariz dela.
— Eu gosto de você de verdade, Harry.
Ele não conseguia pensar. Um formigamento se espalhava pelo seu corpo, paralisando seus braços, pernas e cérebro.
Estava próxima demais. Ele podia ver cada lágrima pendurada em suas pestanas...
Harry voltou à sala comunal meia hora depois, e encontrou Hermione e Rony ocupando as melhores poltronas diante da lareira; quase todos os colegas já tinham ido dormir. Hermione estava escrevendo uma longa carta. Já enchera metade de um pergaminho, que caía pela borda da mesa. Rony estava deitado no tapete da lareira, tentando terminar um dever de Transfiguração.
— Por que demorou? — perguntou o amigo, quando Harry afundou na cadeira ao lado de Hermione.
Harry não respondeu. Estava em estado de choque. Metade dele queria contar a Rony e Hermione o que acontecera, mas a outra metade queria levar o segredo para o túmulo.
— Você está se sentindo bem, Harry? — perguntou Hermione examinando-o por cima da ponta da pena.
Harry encolheu os ombros indiferente. Na verdade, ele não sabia se estava ou não se sentindo bem.
— Que foi? — perguntou Rony se erguendo nos cotovelos para olhar melhor o amigo. — Que aconteceu?
Harry não sabia muito bem como começar a contar, e continuava a não saber se queria contar. Quando acabara de decidir que não ia dizer nada, Hermione decidiu por ele.
— Foi a Cho? — perguntou muito objetivamente. — Ela encostou você na parede depois da reunião?
Abobalhado, Harry confirmou com a cabeça. Rony deu risadinhas, só parando quando seu olhar encontrou o de Hermione.
— Então... ah... que é que ela queria? — perguntou ele fingindo displicência.
— Ela... — começou Harry, meio rouco; pigarreou e tentou novamente. — Ela... ah...
— Vocês se beijaram? — perguntou Hermione sem rodeios.
Rony se sentou tão depressa que arremessou o tinteiro pelo tapete.
Inteiramente alheio ao que fizera, olhou para Harry com grande interesse.
— Então? — quis saber.
Harry olhou de Rony, cujo rosto expressava um misto de curiosidade e hilaridade, para a testa levemente enrugada de Hermione, e confirmou com a cabeça.
— HA!
Rony fez um gesto de vitória com o punho e desatou a rir tão estridentemente que sobressaltou vários segundanistas tímidos sentados junto à janela. Um sorriso relutante se espalhou pelo rosto de Harry ao ver Rony rolar pelo tapete. Hermione lançou a Rony um olhar de profundo desgosto, e voltou a sua carta.
— E aí? —perguntou Rony finalmente, encarando Harry. — Como foi?
Harry refletiu por um momento.
— Úmido — disse com sinceridade.
Rony emitiu um som que poderia indicar alegria ou nojo, era difícil dizer.
— Porque ela estava chorando — continuou Harry pesaroso.
— Ah — exclamou Rony, o sorriso se atenuando em seu rosto. — Você é ruim assim de beijo?
— Não sei — respondeu Harry, que não havia pensado na possibilidade, e se sentiu imediatamente preocupado. — Vai ver sou.
— Claro que não é — disse Hermione distraída, ainda escrevendo a carta.
— Como é que você sabe? — perguntou Rony rispidamente.
— Porque ultimamente Cho passa metade do tempo chorando — respondeu distraidamente. — Chora na hora da comida, no banheiro, por toda parte.
— Mas era de esperar que uns beijinhos a animassem — disse Rony sorrindo.
— Rony — disse Hermione em tom muito solene, molhando a ponta da pena no tinteiro —, você é o legume mais insensível que já tive a infelicidade de conhecer.
— Que é que você quer dizer com isso? — perguntou Rony indignado. — Que tipo de pessoa chora quando está sendo beijada?
— É — disse Harry sentindo um ligeiro desespero —, que tipo?
Hermione olhou para os dois com uma expressão no rosto que beirava a piedade.
— Vocês não compreendem como a Cho está se sentindo neste momento?
— Não! – responderam Harry e Rony juntos.
Hermione suspirou e descansou a pena.
— Bom, obviamente ela está se sentindo muito triste, porque Cedrico morreu. Depois, imagino que esteja se sentindo confusa porque gostava do Cedrico e agora gosta do Harry, e não consegue entender de qual dos dois gosta mais. Depois, está se sentindo culpada, achando que é um insulto à memória do Cedrico beijar o Harry, e deve estar preocupada com o que as outras pessoas vão dizer quando começar a sair com ele. E provavelmente não consegue entender seus sentimentos com relação a Harry, porque era ele quem estava junto quando Cedrico morreu, então tudo isso é muito confuso e doloroso. Ah, e está com medo de ser expulsa do time de quadribol da Corvinal porque está voando muito mal.
O fim de sua fala foi recebido com um silêncio de breve aturdimento, então
Rony falou:
— Uma pessoa não pode sentir tudo isso ao mesmo tempo, explodiria.
— Só porque você tem a amplitude emocional de uma colher de chá isto não significa que sejamos todos iguais — disse Hermione maldosamente, retomando sua pena.
— Foi ela quem começou — disse Harry. — Eu não teria... ela meio que me procurou... e no momento seguinte estava derramando lágrimas em cima de mim... eu não sabia o que fazer...
— Não é sua culpa, cara — disse Rony, parecendo assustado só de pensar.
— Você tinha de ser legal com ela — disse Hermione, erguendo os olhos ansiosa. — Você foi, não?
— Bom — respondeu Harry, um calor desagradável subindo pelo rosto —, eu meio que dei umas palmadinhas nas costas dela.
Hermione parecia estar se controlando com extrema dificuldade para não olhar para o teto.
— Bom, suponho que poderia ter sido pior. Vai voltar a vê-la?
— Terei, não é? Temos os encontros da AD, não temos?
— Você me entendeu — disse Hermione impaciente.
Harry não respondeu. As palavras da amiga descortinavam um cenário de possibilidades assustadoras. Tentou se imaginar indo a algum lugar com Cho — Hogsmeade, talvez — e passando muitas horas sozinho com ela. Claro, ela estaria esperando que ele a convidasse depois do que acabara de acontecer... o pensamento provocou-lhe um aperto doloroso no estômago.
— Ah, bom – disse Hermione distante, absorta outra vez em sua carta —, você terá muitas oportunidades para convidá-la.
— E se ele não quiser? — indagou Rony, que estivera observando Harry com uma expressão incomumente perspicaz.
— Não seja bobo — disse Hermione distraída. — Harry gosta dela há séculos, não é, Harry?
Ele não respondeu. Verdade, gostava de Cho há séculos, mas sempre que imaginava uma cena envolvendo os dois era uma Cho se divertindo e não uma Cho soluçando desconsolada em seu ombro.
— Afinal para quem é que você está escrevendo, Hermione? — perguntou Rony, tentando ler o pergaminho que agora arrastava pelo chão. Hermione puxou-o para longe dele.
— Vítor.
— Krum?
— Quantos Vítor nós conhecemos?
Rony não respondeu, mas pareceu aborrecido. Os três ficaram em silêncio os vinte minutos seguintes, Rony terminando o trabalho de Transfiguração dando bufos de impaciência e riscando as frases; Hermione escrevendo sem parar até o fim do pergaminho, enrolando-o e lacrando-o; e Harry contemplando o fogo, desejando mais do que nunca que a cabeça de Sirius aparecesse ali para lhe dar uns conselhos sobre garotas. Mas as chamas foram gradualmente baixando até só restarem brasas que se desfizeram em cinzas e, olhando ao seu redor, Harry viu que eram, mais uma vez, os últimos a se retirarem da sala comunal.
— Boa-noite — disse Hermione, dando um enorme bocejo a caminho da escada do dormitório das meninas.
— Que é que ela vê no Krum? — perguntou Rony, quando ele e Harry subiam a escada do dormitório dos meninos.
— Bom — disse Harry, considerando a pergunta. — Acho que ele é mais velho, não é... e é um jogador internacional de quadribol...
— É, mas tirando isso — disse Rony, em tom irritado. — Quero dizer, ele é um babaca rabugento, não é?
— É um pouquinho rabugento — disse Harry, cujos pensamentos continuavam em Cho.
Eles despiram as vestes e puseram os pijamas em silêncio. Dino, Simas e Neville já estavam dormindo. Harry guardou os óculos sobre a mesinha-decabeceira e se meteu na cama, mas não fechou o cortinado; em vez disso, ficou contemplando o pedaço estrelado de céu que via pela janela junto à cama de Neville. Se soubesse, na noite anterior, que em vinte e quatro horas iria beijar Cho Chang...
— Noite — resmungou Rony, de algum ponto à direita.
— Noite — respondeu Harry.
Talvez da próxima vez... se houver uma próxima vez... ela esteja um pouquinho mais feliz. Devia ter convidado Cho a sair; provavelmente ela esperasse por isso e agora estava realmente zangada com ele... ou será que estava deitada na cama, ainda chorando por Cedrico? Não sabia o que pensar.
As explicações de Hermione tinham feito tudo parecer mais complicado em lugar de mais fácil de compreender.
Isso é o que eles deviam nos ensinar aqui, pensou, virando-se para o outro lado, como funciona o cérebro das garotas... pelo menos seria mais útil do que Adivinhação...
Neville fungou dormindo. Uma coruja piou lá fora na noite.
Harry sonhou que estava de novo na sala da AD. Cho o acusava de tê-la atraído ali sob falsos pretextos; disse que ele lhe prometera cento e cinqüenta cartões de Sapos de Chocolate se ela aparecesse. Harry protestou... Cho gritava: "Cedrico me dava montes de cartões de Sapos de Chocolate, olhe aqui!" E ela tirava de dentro das vestes a mão cheia de cartões e os atirava no ar. Então,
Cho se transformou em Hermione, que disse: " Você prometeu, sim, Harry... acho que é melhor dar outra coisa a ela... que tal a sua Firebolt?" E Harry protestava que não podia dar a Cho a Firebolt, porque Umbridge a confiscara, e, afinal de contas, aquilo tudo era ridículo, ele só viera à sala da AD para pendurar algumas bolas de Natal com o formato da cabeça de Dobby...
O sonho mudou...
Ele sentiu seu corpo liso, forte e flexível. Estava deslizando entre barras de metal brilhante, pela pedra fria e escura... colado no chão, deslizando de barriga... estava escuro, contudo podia ver objetos à sua volta que refulgiam em cores estranhas e vibrantes... ele estava virando a cabeça... ao primeiro relance via um corredor vazio... mas não... havia um homem sentado no chão mais adiante, o queixo caído sobre o peito, seu contorno brilhando no escuro...
Harry estirou a língua... provou o cheiro do homem no ar... estava vivo mas atordoado... sentado à porta no fim do corredor...
Harry sentia vontade de morder o homem... mas precisava controlar o impulso... tinha coisa mais importante a fazer...
O homem estava se mexendo... uma capa prateada caiu de suas pernas quando ele se pôs em pé; e Harry viu seu contorno vibrante e difuso elevar-se acima de sua cabeça, viu-o tirar uma varinha do cinto... não teve escolha... recuou ganhando altura do chão e atacou-o uma vez, duas, três, enterrando suas presas na carne do homem, sentindo as costelas se partirem sob suas mandíbulas, sentindo o sangue jorrar quente...
O homem gritou de dor... depois se calou... tombou de costas contra a parede... o sangue manchou o chão...
Sua cicatriz doía horrivelmente... parecia que ia se romper...
— Harry! HARRY!
Ele abriu os olhos. Cada centímetro do seu corpo estava coberto de suor gelado; sua roupa de cama se enrolara nele como uma camisa-de-força; tinha a sensação de que um ferro em brasa estava marcando sua testa.
— Harry!
Rony estava parado junto dele, parecia extremamente assustado. Havia mais vultos ao pé da cama de Harry. Ele apertou a cabeça com as mãos; a dor o cegava... ele se virou e vomitou no chão.
— Ele está passando mal de verdade — disse uma voz cheia de pavor. — Não devíamos chamar alguém?
— Harry! Harry!
Ele precisava contar a Rony, era muito importante contar a ele... respirando o ar em grandes sorvos, Harry se levantou da cama, fazendo força para não vomitar outra vez, a dor embaçando sua visão.
— Seu pai — ofegou, seu peito subia e descia. — Seu pai... foi atacado...
— Quê? – exclamou Rony sem compreender.
— Seu pai! Foi mordido, é grave, tinha sangue por toda parte...
— Vou buscar ajuda — disse a mesma voz apavorada, e Harry ouviu alguém sair correndo do dormitório.
— Harry, cara — disse Rony inseguro —, você... foi só um sonho...
— Não! – protestou Harry enfurecido; era fundamental que Rony entendesse.
— Não foi um sonho... não foi um sonho comum... eu estava lá, vi acontecer... fui eu que o ataquei...
Ele ouvia Simas e Dino resmungando, mas não se importou. A dor em sua testa diminuiu um pouco, embora ele ainda suasse e tremesse febrilmente. Ele tornou a vomitar, e Rony deu um salto para trás para sair do caminho.
— Harry, você não está bem — disse com a voz hesitante. — Neville foi buscar ajuda.
— Eu estou ótimo! — engasgou-se Harry, limpando a boca no pijama e tremendo descontrolado. — Não tem nada errado comigo, é com o seu pai que você tem de se preocupar... precisamos descobrir onde é que ele está... está sangrando feito louco... eu era... foi uma cobra enorme.
Ele tentou sair da cama, mas Rony o empurrou de volta. Dino e Simas continuavam a cochichar ali perto. Harry não sabia se passara um minuto ou dez; simplesmente ficou sentado tremendo, sentindo a dor na cicatriz diminuir muito lentamente... então ouviu passos apressados subindo as escadas e tornou a ouvir a voz de Neville.
— Aqui, professora.
A Profª McGonagall entrou correndo no dormitório, trajando o seu roupão escocês, os óculos tortos na ponte do nariz ossudo.
— Que foi, Potter? Onde está doendo?
Ele nunca sentira tanto prazer em vê-la; era de um membro da Ordem da Fênix que estava precisando, e não de alguém que cuidasse dele e receitasse poções inúteis.
— É o pai de Rony — disse ele, tornando a se sentar. — Foi atacado por uma cobra e é grave, eu vi acontecer.
— Como assim, você viu acontecer? — perguntou a professora, contraindo as sobrancelhas escuras.
— Não sei... eu estava dormindo e então estava lá...
— Você quer dizer que sonhou com isso?
— Não! — disse Harry zangado; será que ninguém entendia? — Primeiro eu estava sonhando uma coisa completamente diferente, uma coisa boba... então o sonho foi interrompido. Foi real, eu não imaginei nada. O Sr. Weasley estava adormecido no chão e foi atacado por uma cobra gigantesca, tinha muito sangue, ele desmaiou, alguém tem de descobrir onde é que ele está...
A Profª McGonagall olhava para ele através dos óculos tortos, como se horrorizada com o que via.
— Eu não estou mentindo e não estou enlouquecendo — disse Harry, alteando a voz até gritar. — Estou dizendo que vi acontecer!
— Eu acredito em você, Potter — disse McGonagall brevemente. — Vista o seu roupão: vamos ver o diretor.

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